O problema do mal em Plotino

Enéada I.8

Muitas práticas religiosas vigentes no Império Romano tinham alguma coisa negativa a dizer sobre o mundo material e sobre a corporalidade. Valia mais a vida do espírito, a busca interior por verdades do cosmos, e mesmo o suicídio virou, por um tempo, uma prática viável em centros filosóficos da Antiguidade Tardia. Já que o corpo é ruim e a promessa no além é mais atrativa, morrer não é uma ideia tão assustadora quanto parece. Poucos momentos na história humana foram tão receptivos a essa prática tão extrema e polêmica. Então, percorra o rol de filósofos da Antiguidade Helenística até a Tardia: Lucrécio se matou. Então, Marco Antônio. E Catão o jovem. Em seguida, Sêneca. Antes de todos eles, Sócrates preferiu beber veneno como punição da cidade de Atenas em vez de aceitar um plano de fuga bolado por seus admiradores, já que isso significaria não viver de acordo com os princípios que julgava justo.

Os motivos para cada um desses atos foram diversos, mas a ideia que os unia era: mais valia a vida da mente, ou uma vida coerente com princípios filosóficos abstratos que a pessoa escolheu seguir, do que a existência física por si só. "A vida humana não é um valor por si só" — ela é ligada a um mundo ruim, que só gera ilusões e sofrimento —, e essa ideia pode ser estendida à cultura religiosa que está se formando nesse início da Era Comum cristã: também grupos religiosos vieram com a ideia de que o mundo físico é um espaço de arbitrariedade e erro, e por extensão nossas vidas têm de tudo para ser arbitrárias e erradas. Dessa forma, a salvação só residiria para além do mundo físico. No pós-morte ou na posteridade — numa suposta existência num plano das almas (como acreditam várias religiões de salvação hoje), ou no que fica da sua marca no mundo, para pensarmos numa perspectiva não-religiosa.

Grande parte das pessoas hoje tem alguma consideração sobre o legado que vai deixar — elas pensam sobre o post mortem em certo nível —, e isso pesa em suas ações, em sua filosofia moral. Eu sugiro que isso não foi automático em seres humanos por boa parte da história do Homo sapiens sobre a Terra: o abstrair da pequena influência que um indivíduo terá sobre seu coletivo é fruto de elaboração filosófica.

O tema deste artigo não é a alma, exclusivamente, mas o problema do mal. Como o mal (ou o defeito, como melhor traduz o termo grego utilizado, to κακόν) pode existir em um cosmos que, como vimos, é regido por um ente uno e perfeito.

Desta vez eu vou fazer diferente e resumir Enéadas I.8, que trata do problema do mal. Capítulo por capítulo. Isso nos coloca em contato com o método de Plotino — ele é muito diferente do de Platão, que escreveu diálogos dramáticos, e preferiu expressar suas ideias montando argumentos lógicos, passo a passo, que nós como leitores podemos acompanhar e julgar cada etapa.

O tratado 8 é dividido em 12 capítulos. No primeiro Plotino sugere que a questão "de onde vem o mal?" está mal formulada. Mais útil é questionar o que é o mal ontologicamente, qual é o seu assento material, diz ele, e em que casos ele é meramente acidental em nossas vidas. Outra questão: já que todo o conhecimento começa por comparação entre coisas semelhantes, por qual faculdade mental podemos identificar o mal?

Aqui ele está retornando à teoria de conhecimento de Platão: nós conhecemos indivíduos e objetos do mundo via semelhança com outras formas. Se você fosse parar num mundo estranho, onde tudo é diferente do mundo humano, mal saberia indicar onde começa um objeto e acaba o outro: a própria unidade que nós atribuímos aos itens de um escritório por exemplo, a cada elemento: uma cadeira, uma mesa, uma estante — deriva de nosso conhecimento prévio dessas coisas, e da diferença que somos capazes de identificar. Existem milhares de tipos, cores, formatos de cadeiras, mas a gente sabe abstrair o conceito "Cadeira", com C maiúsculo, olhando para qualquer uma de suas instâncias. Por que? Porque há uma forma intelectual cadeira que nós, terráqueos do século 21, compartilhamos. Essa é a epistemologia platônica resumida, e aquilo que Plotino está resgatando aqui para falar do mal. E ele pergunta: "então será que existe uma forma do Mal, o Mal com M maiúsculo, puro mal e puro defeito (κακόν)? O termo grego usado é to κακόν, que não é uma palavra de tons morais — quando Plotino fala do mal, a gente é obrigado a lembrar que a semântica entre línguas nem sempre coincide, e to κακόν do grego antigo não é o mal como crueldade, como traço maligno de uma personalidade. Nem o Diabo, que não existia no mundo grego, nem uma ruindade abstrata que caracteriza o mundo físico e os instintos humanos, como pensam algumas denominações do cristianismo. Mal = defeito, pode ser um defeito moral, mas pode ser a feiura de uma pessoa, a música ridícula que meus vizinhos estão ouvindo agora, a construção defeituosa de um prédio, por exemplo.

Como Plotino responde à questão: nós conhecemos o que é mal como pura falta do bem/de harmonia em dado objeto, por contraste somente. Se chamamos algo perfeitamente bom, belo e harmônico, por via negativa nós conhecemos o mal, destituído de forma e defeituoso. Do princípio primeira das coisas, o mal é a forma ideal da falta. Gravemos essa fórmula.

Capítulo 2 traz a definição do Bem. "O Bem é aquilo de que todo o mais depende, rumo a que toda a existência aspira como sua fonte e sua necessidade, ao passo que, por si só, é destituído de necessidade, autossuficiente, aspirante por nenhum outro, a medida e o termo do resto [...]". Mais para frente ele solta a frase: "O Bom é para além do belo" — ele é a forma das formas que determina valores que orientam nossas vidas. No platonismo essa fonte de coerência um princípio intelectual destilado, por assim dizer, um princípio que tudo permeia e doa harmonia a qualidade positivas que existem nas coisas — não é uma mente divina que precisa deliberar ou julgar. Tudo já está julgado e é definido pelas leis que coordenam a existência, e que fazem os corpos colidir entre si. As leis do universo são perfeitas, e se um caminhão atropelou seu cachorrinho num dia de infortúnio, meu amigo, isso não torna as leis da cinética ruins. O mundo onde habitamos é um cenário de acidentes esperando para acontecer. Plotino atesta a indiferença completa do universo perante a integridade física de nossos corpos, e o faz como um materialista moderno — o universo não conspira para te ajudar. Você nem acontece, a nível fenomenológico, na mente do universo, porque ele não tem uma mente refletora das coisas. Nós, aqui na esfera sublunar, abaixo da esfera noética, que fazemos coisas como refletir e chegar a conclusão sobre como o destino é cruel. Já falo mais sobre isso, mas ressalto como ideias que normalizamos do cristianismo soam absurdas para os platonistas: A ideia de um ser de carne e osso, o Messias, que se enche do Lógos, ou do Lógos que encarna na Terra como Deus e anda entre homens é absurda dentro do platonismo. As duas esferas são incompatíveis, embora sejam interdependentes — a esfera intelectual, onde a perfeição e o divino habitam, só existe a nível de pensamento, do intelecto. E ela só pode ser acessada por nossas mentes pensantes — o Intelecto em si não pensa, ele é tal qual um princípio. Quem pensa é a alma — Plotino a atribui a formas superiores de inteligência como nós, seres humanos, mas também a planetas (que para ele são os deuses — um dia falamos sobre como Plotino é um dos mentores de certas vertentes da astrologia, ver Enéadas II se você estiver curioso).

Cito: "A alma , do lado de fora, rodeia o Princípio Intelectual, e na medida em que o contempla, enxergando-o em seus recônditos, através dele vê Deus." — Esse é o To Hen, a Unidade das coisas, não uma personagem antropomorfizada da Bíblia. A alma tem vislumbres, note, do que poderia ser o divino, sem nunca abarcá-lo conceitualmente. E o mal não tem espaço aqui.

Capítulo 3 traz uma primeira conclusão: o mal tem que estar no reino do não-ser, o que não significa que ele não existe, só que ele está radicalmente apartado do autêntico ser. Ele é uma cópia fracassada ou uma distorção. É a aparência de algo bom, vantajoso, justo, belo, matematicamente exato ou harmonioso, que encerra em si uma falsidade. Aqui Plotino lembra argumentos de Platão em Teeteto. O mal "deve ter, em certo sentido, uma existência, mesmo que ela possa não ser uma essência". O mal relativo à medida (o desmensuramento absolutoM/em>, permita-me inventar uma palavra aqui), não é uma forma pura dotada de substancialidade, como se o Nõus/mundo das ideias fosse um quarto de despejo de todos os conceitos concebíveis pela linguagem humana em forma pura. Essa é uma interpretação infantil do platonismo. Em dado trecho, Plotino diz que formas defeituosas "têm caráter absoluto por saturação". Ou "tomam a necessidade o caráter defeituoso por consagração a esse absoluto". Eu reconheço, nosso Plotino está sendo extremamente vago aqui. Mas lembremos que neste capítulo 3 ele está respondendo como nossas mentes reconhecem o mal: mais tarde ele defenderá que essa é uma impressão distorcida da Ontologia fundamental. Um efeito ilusório da falta do bem. O mal só existe — e existe aos montes — a nível dos fenômenos que preenchem o cenário de nossas vidas. Ele é parte do mundo físico, aliás, mas a nível dos princípios ele inexiste. Não há falhas ou princípios absolutos faltantes no Nõus; o mundo noético é perfeitamente regulado, matematicamente exato, as leis da física clássica não conhecem exceções para Plotino: os astros nunca deixam de cumprir suas órbitas. "o ser [do mal] é atribuído por um acidente verbal", ele dirá no capítulo 5 da Enéada I.8.

E vai além: mesmo nós, humanos, levamos existências reguladas por regras e leis biológicas, bioquímicas, nocionais, psicológicas, sociais que mal damos conta de entender. Nossa perspectiva enxerga o mal e o defeito no mundo — dota-o de substancialidade que não é essencial aos fenômenos a nível noético. (Essa perspectiva perturba um monte de gente, mas será repetida por várias filosofias modernas, de Berkeley e Leibniz até certas versões da teologia cristã e islâmica, da Nova Era).

Capítulo 4: A matéria é má — Plotino começa assim, categoricamente. "A alma é levada a denominar coisas como boas ou ruins não por seu verdadeiro valor, mas pelo mero teste de seu gosto e desgosto." As afecções humanas são fonte de falsidades essenciais — uma ideia que vemos no budismo, por exemplo, e que faz parte da cultura do ascetismo sendo formada na Era Axial.

Capítulo 5. O mal não está em qualquer falta gradual, mas na completa ausência da forma. Aqui Plotino dá, pela primeira vez, exemplos mais palpáveis. Ele diz: "a doença é excesso ou defeito no corpo, que tal qual organismo material se rebela contra a ordem e a medida; a feiúra não é nada mais do que a matéria não controlada pela Forma-Ideal; a pobreza consiste em nossa necessidade e falta de bens ocasionada por nossa associação com a matéria, ela cuja natureza consiste em ser um longo almejar" [isto é, um desejar prolongado].

Esse mal está lá antes de você e eu nascermos. Nem todos os homens são maus, mas muitos se deixam submeter por vícios e pulsões. Uma parte deles aprende a controlá-los, e se tornam virtuosos. Para Plotino essa esfera humana não parece importar tanto; ela é um reino de acidentes, de várias possibilidades e combinação entre virtude e defeitos de caráter que é esperada no mundo físico. De qualquer forma, o mal absoluto não habita o homem. Ele é um efeito julgado de suas ações no mundo social.

O capítulo 6 confronta provérbios populares gregos. "Males nunca passam, mas antes existem por necessidade" é um deles. Outro: "enquanto o mal não existe na ordem divina, ele assombrará a natureza mortal para todo o sempre." Essa é a noção do mundo como um vale de lágrimas, do mundo que "jaz no maligno", para falarmos biblicamente. Plotino corrige o primeiro ditado: "o mal é uma necessidade, pois deve haver um contrário para o bem". Aqui ele es vertido em uma categoria da lógica, e continuará sendo no capítulo 7, que fala mais sobre a interdependência lógica do par Bem vs. Mal. "O mal é parte do quinhão arcano que, como lemos, consiste na matéria subjacente que ainda não foi trazida à ordem pela forma-ideal". Mais uma frase críptica para nossa coleção. Então ele a reformula: "se o bem é a única coisa existente [noeticamente falando], é inevitável que, partindo dele [...] o descender ou fastar contínuo produza um último [estágio], algo após o qual nada mais poderá ser produzido: este é o mal".

Cá entre nós, esse não é o argumento mais eficaz — ele reduz a argumentação a um exercício de derivações lógicas, sem dar qualquer pista palpável de como isso ocorre a nível dos fenômenos, que é o que importa para nós, seres humanos. É a mesma coisa que acontece nas discussões sobre a iluminação e a inferioridade da matéria. Já voltaremos a esse ponto.

Capítulo 8: argumenta contra a objeção de que a forma humana traz o mal (ou defeito) em si — exatamente o caso do pecado original da doutrina judaico-cristã, aquela ideia da perversidade inerente ao ser humano que calvinistas, puritanos e fundamentalistas cristãos hoje defendem. Esse capítulo vale a leitura detida justamente por dar argumentos contra noções tão normalizadas em nossa época: uma criança de 3 anos chorando está sendo egoísta (eu já li em um ideólogo cristão chamado Tim Lahey), e isso seria reflexo do pecado original, e, portanto, deve ser domada. Existe um livro de 1978 chamado "The Strong-Willed Child", de um tal Dr. James Dobson que repercute essa ideia e defende castigos físicos para crianças. Pais cristãos deveriam estapear o pecado original para fora dos corpos de seus rebentos, é o argumento aqui, e sei que se você cresceu no Brasil sabe o quão comum essa visão é. Esse é o oposto da doutrina ética do platonismo, e negação de toda possibilidade de uma ética, na visão de Plotino: a gente constrói sociedades e comunidades porque acredita e conta com o posicionamento ético um do outro, não o contrário.

Ele argumentará que a alma humana habita duas esferas — a esfera da matéria é desmedida por excelência, sem limites definidos e controle. Nossos estados de espírito flutuam conforme fatores que nem sabemos controlar — numa certa manhã seu humor está péssimo, depois melhora; em certos meses da sua vida você estará profundamente depressivo, em outros estará bem e produtivo. Não há nada de incomum nisso; não existe papo de pecado no platonismo; o universo é indiferente ao seu comportamento, e por isso mesmo você deveria tentar tomar pleno controle dele. A qualidade de sua vida mental dependerá disso.

O capítulo 9 faz um balanço geral de todo esse papo de bem e mal, e traz uma imagem mais bem-sucedida para explicar o contraste entre essas questões. Cito: "para enxergar as trevas, o olho se priva da luz; é no esforço para deixar de ver, portanto, que ele abandona a luz que tornaria as trevas invisíveis; longe da luz, seu poder consiste antes no não-ver do que no ver, e esse não-ver é a abordagem mais efetiva para enxergar as trevas. Assim, o Princípio Intelectual, para ver seu contrário, deve deixar sua própria luz trancafiada dentro de si e, por assim dizer, partir de si mesmo para dentro do reino aquém; ele deve ignorar sua luminosidade nativa e se submeter à contradição por excelência de seu próprio ser."

Minha sugestão: esta é a natureza da consciência humana; Plotino está teorizando como a alma/mente humana funciona entre o nível noético e a materialidade. Somos almas exiladas num mundo estranho à nossa natureza noética, vivendo um desamparo transcendental até entendermos um fato elementar: nossa casa é o Nõus e é o Todo, não a esfera sublunar. Mais implicações disso quando Plotino começar a desenvolver sua filosofia ética.

Capítulo 10 trata da natureza da matéria, e menciona algo, por cima, sobre o que é o pós-vida: é uma dissolução no todo. Esse tópico liga a uma concepção muito comum da era científica, e mesmo do ateísmo científico. Aqui eu remeto a Enéadas II.4 e IV.8, onde Plotino discute duas teorias dos mesoplatônicos sobre as origens da matéria. Os detalhes não importam, mas ele se afiliará à perspectiva de que a matéria é eterna, não é em qualquer sentido externa à origem do tempo (do Big Bang, para falar no linguajar científico mais recente). Ela simplesmente vive um estágio de transitoriedade eterna até o tempo acabar. Os átomos de carbono, que hoje constituem seu corpo, em uns 50 anos serão alimento de plantas. Em 20000 serão parte de alguma estrutura mineral. O dinossauro do Período Mezosoico hoje é petróleo, e amanhã virará combustível do seu carro. Não há 'vida' na matéria nesse sentido estrito -- a matéria é um receptáculo vazio, é antisubstancial. Deve haver outra coisa que doa substancialidade aos objetos que compõem o mundo, e essa coisa é de natureza intelectual. De natureza noética, para falarmos como um plantonista. É uma ideia muito absurda? [Com isso fecho meu excurso e volto ao último capítulo da Enéada I.8: capítulo 11.

Ele começa com uma refutação aos preconceitos que dizem: o vício é debilidade na alma. Ele seria uma falha de certos grupos de pessoas, corroborando preconceitos comuns dos gregos contra mulheres, estrangeiros, crianças. Plotino é curiosamente cabeça-aberta aqui defendendo o oposto: "A queda da alma é sua entrada na matéria". Todos, sem exceção, somos sujeitos ao erro. Um desejo só não é divisivo na alma humana: o desejo de se unir ao absoluto. Todos os outros podem levar ao mal, ao erro.

*

Com isso terminamos uma das interpretações mais inesperadas sobre o problema do mal. Digo que ela é inesperada já que a história da cultura humana, ao menos na Europa cristã, seguiu o caminho oposto — a filosofia moderna, de forma geral, encontra seu conforto no fato de podermos discutir o profundo descompasso entre nossas vontades e a vida que levamos. Ela é uma filosofia que se mantém como uma comunhão de mentes assombradas por um mundo horrível — estou em pensando Albert Camus e outros existencialistas, sobretudo — e esse é um caminho oposto ao de Plotino. Nessa perspectiva contemporânea, o ser humano é um ser que anseia desesperadamente por significado, clareza, ordem e razão, algo que o universo jamais proverá. O cosmos é silencioso, indiferente, irracional e caótico. O choque entre esta demanda humana e o silêncio do universo é o que Camus chama de "o absurdo". Pessoas que recorrem a uma resposta mágica para a falta de sentido inerente da vida (como um Deus) estão forçando uma consolação, entregando-se cegamente a uma crença em um significado transcendental inventado. Essa "consolação" é, para Camus, uma traição à condição humana. É uma capitulação. É dar preferência a uma mentira confortável à constatação inevitável de que tudo é um absurdo. A tarefa da filosofia, por sua vez, não seria consolar, mas despertar. Seria encarar o Absurdo de frente, sem ilusões, sem fugas. O conforto, se é que podemos chamar assim, não vem de uma resposta, mas da coragem de viver sem respostas definitivas.

O cristianismo e o gnosticismo têm outra resposta, mas estão unidos na concepção de que o mundo é assolado por um mal absoluto, o mal habita a alma humana uma vez que ela encarna. Plotino é um terceiro caminho para esse mesmo questionamento.

Em algum momento, teremos que falar sobre os gnósticos, um dos grupos mais fascinantes do início da cristandade que optou por um divórcio radical com o legado da Torá e do judaísmo rabínico. A ponto de negar o Velho Testamento e o deus dos hebreus como um demiurgo estúpido e mal-intencionado.

Mas antes de isso acontecer, eu vou fazer um breve excurso: três artigos sobre pressupostos para lermos Platão. Julguei que isso é necessário porque a gente vai chegar em outros platonistas tardios sem falar de Platão: quero explicar por que nenhum deles optou pelo estilo de diálogos platônicos, em que você tem Sócrates conversando com alguém da cidade de Atenas, e a própria voz autorial de Platão nunca aparece figurada no texto. Para sanar essa enorme lacuna que deixei aqui, começarei com República I, Filebo e Íon: um dos diálogos mais famosos de Platão seguido de dois diálogos que mal são lidos hoje em dia.


Por F.V.Silva, 25/08/2025