Escrito por F.V.Silva em 27/05/2024
Íon é um diálogo situado na fase média do desenvolvimento intelectual de Platão; ele é comumente lido em conjunto como um texto complementar aos clássicos República e Político — como um debate constrangedor em que Sócrates manipula, do início ao fim, um "ator descerebrado cheio de si".1 Este ator é o Íon que dá título ao diálogo, um rapsodo que acabava de voltar de uma competição de talentos carregando a coroa dourada de primeiro colocado. Uma vez que o aborda, Sócrates passa a questionar sobre seu conhecimento da tradição e do poeta em que Íon se especializou, o grande poeta épico Homero. E eis que o diálogo se desdobra como uma discussão sobre o valor de Homero (e da tradição cultural, por extensão) para o desenvolvimento intelectual de um povo; sobre a performance e o conhecimento de artistas contemporâneos de sua arte; sobre se artistas conhecem o mundo, ou se sua aspiração implica que têm um comando indireto, induzido por inspiração e entusiasmo, dos temas de sua poesia.
Como podemos imaginar, Sócrates visa concluir o que sempre conclui: a jornada filosófica, pautada na racionalidade, é superior à inspiração artística e seus jogos de aparências. A razão é superior à sensibilidade; a filosofia às artes. Íon foi um dos poucos diálogos que trazem pontos que, quase por completo, foram questionados pelos platonismos posteriores. Por esse motivo é uma obra de suma importância para nós para chegarmos ao neoplatonismo. A partir dela, a gente entende onde Platão precisou ser superado, ou corrigido, para que se formasse um sistema de filosofia unificado em torno do princípio do monismo.
A ideia mais chamativa no diálogo é a noção de inspiração artística (ἐνθουσιασμός) que Sócrates resgata dos pré-socráticos. Ele a introduz como uma forma de possessão do artista por um deus ou deusa — e no imaginário panteísta da Grécia Clássica, divindades são forças imateriais que operam nos bastidores da vida humana e do cósmos. Sua paixão por alguém é a ação de Afrodite; sua ira, é a atuação de Ares. Se você se inspira a criar uma obra de arte, torna-se cego para seu ego e preocupações; você está como que possuído por forças externas. Ao passo que o Sócrates platônico via essa união mística entre humanos e a esfera do divino como uma supressão da racionalidade (e ela a usa para pôr em jogo o valor da poesia), para os neoplatônicos o ato de unir-se ao cósmos virou um objetivo máximo (vide Plotino nas Enéadas, VI.9.11).2 No contexto do neoplatonismo, práticas ascéticas ligadas ao exercício de autoconhecimento filosófico entraram em voga no século III AEC; nelas, o indivíduo se purifica das influências do mundo material e busca uma conexão com a esfera do divino. Na filosofia dos Padres da Igreja católica, ela virou mortificação da carne:
"Há tanto prazer em contemplar a verdade — por menor que seja a parte que alguém possa contemplar —, tanta pureza, tanta sinceridade, tanta certeza incontestável das coisas, que ninguém julgará ter alguma vez conhecido algo mais, quando pensava que sabia; e, para que a alma seja menos impedida de aderir totalmente à verdade, a morte, que antes era temida [isto é, a fuga e libertação completa deste corpo], passa a ser desejada como o maior dos dons." (Agostinho de Hipona. De Quantitate Animae, XXXIII. 76).3
Na história do esoterismo ocidental, essa experiência virou o alvo da meditação transcendental. Na música, da inspiração epifânica. Nessas três esferas, a experiência segue o rumo oposto da advertência de Sócrates — deixar a própria racionalidade e integrar-se ao Cósmos, ao Divino, à Totalidade se torna um valor supremo, disponível somente a iniciados.
Aqui surge a pergunta: Como se deu essa inversão? Antes de respondê-la, deixa os resultados do estudo do diálogo Íon para entendermos como Platão articula as questões ali contidas —— em seguida veremos como elas foram, uma por uma, questionadas.
Antes, um resumo dos argumentos...
Ele foi traduzido do esquema presente na edição inglesa: Plato on Poetry, ed. by Penelope Murray. Warwick: Cambridge Greek and Latin Classics, 1995, p. 99-132.
530a-530b4: Prólogo. Sócrates encontra Íon, parabeniza-o por seu sucesso no campeonato de rapsodos em Epidaurus e lhe deseja sorte para a Panathenae.
530b5-d8: Sócrates inveja os rapsodos por sua profissão, particularmente por causa de sua especialidade em Homero.
530d9-533c9: Sócrates questiona Íon e define que a especialidade do rapsodo deveria se aplicar à poesia como um todo. Íon questiona por que é que, neste caso, ele só consegue discursar sobre Homero.
533c9-536d7: Sócrates explica que a habilidade de Íon não depende de habilidade ou conhecimento mas em inspiração, que deriva, em última estância, das Musas. Tal qual um ímã exerce poder sobre uma corrente de elos de ferro, a inspiração das Musas se estende do poeta para o rapsodo e para a audiência.
536d8-539d4: Sócrates questiona agora Íon sobre o tema da poesia de Homero, e o coage a concordar que, no que diz respeito a cada uma das habilidades de que Homero trata (por exemplo, a de guiar carruagens, medicina, profecia), o praticante dessas habilidades será um juiz melhor das palavras do poeta do que o rapsodo.
539d5-541d6: Considerando que todas as habilidades são melhor compreendidas por seus respectivos praticantes, Sócrates pede para Íon selecionar as partes dos poemas homéricos que são melhor compreendidas pelo rapsodo. Após várias tentativas de pontuar a especialidade singular do rapsodo, Íon é levado a identificar a habilidade do rapsodo com a do general. Sócrates pontua que, uma vez ele é o melhor rapsodo da Grécia, também ele deve ser o melhor general. Mas por que, naquele caso, ele não havia sido designado como general?
541e1-542b4: Sócrates repreende Íon por não dar mostras das muitas coisas valiosas que ele afirmar saber sobre Homero. Ou ele está sendo injusto, ou ele louva Homero não em função de sua habilidade (téchne), mas por meio de emanação divina. Tendo a opção de escolher entre ser injusto ou divinamente inspirado, Íon escolhe passar por alguém inspirado.
Íon é um diálogo antitradicionalista: a interpretação de Allan Bloom
Allan Bloom. On Plato's Ion: an Interpretation (1971)
Começamos com um artigo de 1977 assinado por Allan Bloom; ele analisa Íon como um texto antitradição: a crítica socrática relativizaria o valor incontestável da tradição representada por Homero e por rapsodos como o próprio Íon. Sócrates teria escolhido dialogar com Íon porque ele personifica a tradição grega que oferece uma visão dogmática e não questionada do mundo — toda tradição, a sua maneira, é uma cristalização de ideias aceitas por séculos, que resultam inquestionadas. Íon, no caso, é um transmissor acrítico desses valores, confiando na autoridade de Homero sem examinar o conteúdo de seus poemas racionalmente. Em dado momento Sócrates contrasta a arte técnica (como a medicina ou a carpintaria) com a arte dos rapsodos, e expõe a falta de fundamento racional da tradição homérica: Íon não possui conhecimento real, apenas repete e adorna os poemas.
Bloom destaca que Sócrates usa a estrutura das artes técnicas para demonstrar a incoerência da posição de Íon. Se Homero fala sobre tudo (guerra, política, religião), então Íon, como seu intérprete, deveria dominar todas essas áreas, o que é impossível. Sua arte, afinal, é a arte das palavras, dos conceitos; ela está ligada à articulação dos mecanismos que participam das habilidades humanas. Essa contradição revela que a tradição poética, embora influente na mundividência grega, carece de responsabilidade epistemológica. Sócrates sugere que a "inspiração divina", alegada por Íon, é apenas uma desculpa para sua ignorância, pois não há critério racional para validar as interpretações dos rapsodos. Assim, o diálogo expõe o conflito entre o conhecimento filosófico, que busca fundamentos, e a tradição poética, que se sustenta em autoridade e convenção.
A interpretação de Bloom também enfatiza o caráter político da crítica socrática. Homero era a base educacional e moral da Grécia, e questioná-lo significava desafiar a cultura estabelecida. A reação de Íon, que oscila entre a vaidade e a incapacidade de defender sua posição, ilustra a resistência dogmática das culturas bem estabelecidas a qualquer crítica. O diálogo, portanto, é uma metáfora do embate entre filosofia e tradição, onde Sócrates representa a busca por conhecimento autônomo e liberdade da mente filosófica da inércia dos dogmas e costumes.
Íon no contexto da Atenas Clássica
Há uma objeção mais evidente à leitura de Allan Bloom é: ela é modernista demais, e ignora tanto a parcela de valorização da tradição própria do pensamento platônico e cultura ateniense, quanto a posição de Íon dentro de uma cadeia longa de diálogos sobre o tema do valor epistemológico da poesia e de Homero para a educação filosófica.
Precisamos complementar essa leitura, portanto, e me volto à longa introdução de Penelope Murray para a edição da Cambridge para um volume que une quase tudo o Platão escreveu sobre poesia: Plato on Poetry.
Penelope Murray. Plato on Poetry: Ion; Republic 376e-398b9; Republic 595–608b10 (1996)
O texto inicia destacando a influência de Platão na tradição filosófica e estética ocidental, especialmente sua ambivalência em relação à poesia. Enquanto Platão sugere em a República que a poesia poderia ser tolerada se provasse sua utilidade para a sociedade, sua crítica à mimesis (imitação) e à inspiração poética como coisas irracionais estabeleceu um debate duradouro. A poesia, na Grécia antiga, não era apenas arte, mas parte integral da educação e da vida cívica, o que explica a severidade de Platão ao questionar seu valor moral, a responsabilidade de sua epistemologia. O contexto de Platão destoa muito do nosso, onde há um mercado de arte que você pode vasculhar e optar por suas leituras com base nos seus gostos: se você acha que um livro do Jefferson Tenório, por exemplo, é imoral e ruim, simplesmente não o leia. Não consuma mais esse escritor. Ele não é parte incontornável da educação brasileira, em partes porque nossa educação básica eliminou literatura dos currículos quase por completo. No contexto de Platão, Homero era um encontro obrigatório para quem quisesse se alfabetizar.
Platão desenvolve no República a noção de mimesis, argumentando que a poesia e a arte são imitações de aparências, distanciadas da verdade das Formas. O exemplo do pintor que copia uma cama (que já é uma cópia da Forma ideal) coloca a arte em um terceiro nível de realidade, tornando-a enganosa. Essa crítica é ambivalente: em República 3, a imitação de modelos virtuosos é permitida, mas no livro 10, toda poesia mimética é condenada por corromper a alma ao alimentar emoções irracionais. Ficamos de mão abanando se quisermos uma teoria definitiva de Platão sobre o valor da arte, e isso em partes é culpa nossa de querer encontrar um pensador sistemático em um contexto onde a filosofia sistemática não operava.
No Íon, o aparato conceitual é distinto. Sócrates descreve a poesia como produto de uma inspiração divina, comparando poetas a profetas possuídos pelas Musas. Essa visão parece elogiosa, mas é ironicamente subversiva: o poeta, "fora de si", não tem conhecimento técnico (techne) do que diz. A inspiração, portanto, não confere sabedoria, mas sim um estado de irracionalidade que inviabiliza a poesia como fonte de verdade.
Platão contrasta a poesia, baseada em inspiração e imitação, com a filosofia, que busca conhecimento racional. No Fédro, embora a "loucura divina" do poeta seja reconhecida, sua alma é classificada abaixo da do filósofo. A conclusão do Íon e do República é clara: a poesia tradicional, especialmente a de Homero, deve ser banida da cidade ideal por sua incapacidade de justificar racionalmente seus conteúdos e por seu potencial corruptor. Daí dizermos que o discurso da poesia é epistemologicamente irresponsável. Não importa a sensibilidade do artista ou seu direito de autoexpressão; a coesão social vem em primeiro lugar.
E aqui voltamos para o Paradoxo do estilo platônico; tratei dele no primeiro texto desta série: ao mesmo tempo em que Platão condena a mimesis, seus diálogos são diálogos miméticos, onde Sócrates e outros personagens "imitam" discursos. Essa contradição é explicada de formas variadas: alguns argumentam que Platão distingue entre mimesis nociva (poesia homérica) e benéfica (filosofia em forma dialógica), enquanto outros veem nos diálogos um convite à reflexão crítica, oposta à passividade da audiência poética.
Uma nota aqui para a função social da poesia e a crítica a Homero: a poesia grega, especialmente Homero, era o fundamento da educação (paideia), ensinando virtude através de modelos heroicos. Platão ataca essa mesma tradição ao mostrar que os deuses e heróis homéricos são moralmente falhos (mentem, cometem injustiças) e que a poesia alimenta a parte irracional da alma. A proposta de Platão é substituir a poesia por uma educação filosófica que cultive a razão. Ele elenca Sócrates para representar a vida contemplativa como um estilo de vida dos filósofos em treinamento de sua academia. Vamos ter que falar sobre isso em tratar de Eutífron; esse é um assunto por si só fascinante que explica porque Sócrates é uma personagem constante em Platão. Explica porque Platão se esconde atrás de um dos homens mais controversos de sua cidade.
Murray encerra seu prefácio analisando a recepção das ideias de Platão. Enquanto Aristóteles respondeu com uma defesa da mimesis como catarse, o Neoplatonismo e o Romantismo reinterpretaram a inspiração poética como genialidade criativa. Shelley, por exemplo, viu no Íon uma defesa da poesia como expressão divina, ignorando o ceticismo socrático. Essa multiplicidade de leituras revela tanto a riqueza quanto as lacunas do argumento platônico.
Distorções produtivas de Íon: a interpretação de Suzanne Stern-Gillet
Suzanne Stern-Gillet. On (Mis)interpreting Plato's Ion (2004)
Suzanne Stern-Gillet critica a interpretação romântica do Íon, especialmente a de Shelley, que vê no diálogo uma celebração do poeta como gênio inspirado. Shelley traduz o termo theia moira ("dom divino") de forma a sugerir uma colaboração entre o poeta e a Musa, distorcendo o texto original, onde o poeta é um mero veículo passivo das esferas superiores. Essa leitura ignora a ironia socrática e a crítica subjacente à irracionalidade da inspiração; eis uma distorção produtiva comum às práticas de tradução dos tempos do Romantismo. Mas essa distorção não pára por aí; a autora isola algumas interpretações mais recentes do Íon que reproduzem Shelley, não o texto do diálogo platônico. Alguns exemplos:
Eva Schaper, em Prelude to Aesthetics, atribui a Platão a distinção entre arte criativa e techne (técnica), baseando-se em uma leitura equivocada do Banquete (205b). Ali, poiesis significa "produção" em geral, não "arte" no sentido moderno. Schaper projeta anacronicamente conceitos pós-Kantianos sobre Platão, transformando-o em precursor do Romantismo, quando sua visão era precisamente oposta: a poesia carece de techne justamente por ser não racional.
Christopher Janaway defende que Platão admitia uma techne poética (habilidade técnica), reservando a inspiração para a excelência. Stern-Gillet rebate: no Íon, a inspiração exclui qualquer techne, pois o poeta não controla seu processo criativo. A menção a uma "arte da poesia" no trecho 532c é tática, e não uma concessão. É parte da estratégia socrática de expor a ignorância de Íon.
O próprio Platão retomou ideias mais antigas; ele não as distorceu, mas no contexto do diálogo dramático, as evocou para contrapôr-se-lhes um novo posicionamento. Ele age como um o porta-voz de uma vanguarda do pensamento que ficou conhecida como filosofia. A ideia de inspiração poética, por exemplo, já existia em Demócrito de Abdera, mas Platão a radicaliza ao negar qualquer papel ao conhecimento. Enquanto Demócrito via a inspiração como complemento à techne, Platão coloca cada uma delas em um campo oposto=.
Então vem a pergunta mais intrigante: por que Platão abandonou a ideia de inspiração divina em seus diálogos posteriores? Stern-Gillet vai a fundo em demais textos e sugere que Platão substituiu a theia moira pela mimesis na República já que a primeira era incompatível com a responsabilidade moral do poeta. Se o poeta é uma espécie médium inconsciente de seus atos, não pode ser censurado por conteúdos imorais. A mimesis, porém, permite uma critica à irresponsabilidade de alguém que reproduz aparências falsas. As lacunas no argumento do Íon — como a falta de explicação sobre a origem divina da inspiração — revelam a possível insatisfação de Platão com sua própria teoria, levando-o a reformulá-la. O que é certo é que ela não voltaria a ser mencionada.
E aqui fica uma ideia para pensarmos os neoplatônicos: a multiplicidade de interpretações de Íon — de leituras românticas a técnicas — expõe lacunas no argumento de Sócrates. Sua descrição da inspiração como irracional é ambígua: se o poeta é um "canal" divino, como explicar a qualidade variável de suas obras? Se a poesia não é techne, por que exige habilidades formais (métrica, ritmo)? A falta de uma definição clara do mecanismo da inspiração abre espaço para projeções. Platão parece consciente dessas falhas, abandonando a theia moira em favor da mimesis em obras posteriores. Assim, as distorções históricas são tanto sintoma da ambiguidade platônica quanto do desejo moderno de encontrar em Íon uma teoria da arte que não se encontra ali.
Minha sugestão é que o reconhecimento posterior das limitações do esquema platônico levou a duas vias: a via cognoscendi dos artistas (para os quais as emoções e afecções estéticas são uma forma de conhecimento, de techne) e a via mystica (Plotino, os Padres da Igreja e tradição esotérica ocidental).
Uma resposta moderna de John S. Gentile
John S. Gentile. Defending Ion. A Contemporary Rhapsode Replies (2008)
John S. Gentile, apresenta uma defesa da figura do rapsodo contra os argumentos do diálogo platônico Íon. Gentile argumenta que Platão constrói a figura de Íon como uma caricatura para facilitar a retórica de Sócrates e reforçar a crítica filosófica à arte poética e performática. Uma das principais defesas contra o argumento socrático é a afirmação de que o desempenho artístico — como o do rapsodo — é uma forma legítima de conhecimento e interpretação. Gentile destaca que a performance não é mera repetição mecânica, mas um processo interpretativo profundo, que exige preparo intelectual, sensibilidade estética e domínio técnico. Ela exige sua própria techne. O autor defende que o rapsodo compreende a mente do poeta e que, por meio da performance, aprofunda sua compreensão e produz um tipo específico de conhecimento.
Outro argumento importante de Gentile é a crítica à ideia socrática de que a arte performática seria apenas um produto de inspiração divina, desprovida de técnica ou conhecimento. Sócrates nega ao rapsodo qualquer saber sistemático, reduzindo sua arte à possessão irracional. Contra isso, Gentile argumenta que o rapsodo é um artista plenamente consciente de seu ofício, que conjuga inspiração com estudo, disciplina e refinamento técnico. A performance, segundo essa visão, não apenas expressa emoções, mas investiga sentidos, articula saberes e comunica valores culturais. Assim, o ataque de Sócrates à figura do rapsodo ignora ou despreza as complexidades e exigências do labor artístico.
Gentile também desafia a separação rígida entre forma e conteúdo defendida por Sócrates, segundo a qual o conhecimento de um tema (como pesca ou condução de carruagens) habilita alguém a interpretar poemas sobre o assunto. Essa visão desconsidera o caráter artístico da linguagem poética, reduzindo o texto literário a um compêndio de informações factuais. Gentile responde que a poesia possui sua própria lógica e que seu valor está, justamente, na forma como transforma o conteúdo através da linguagem, ritmo, imagem e emoção. Interpretar poesia é, portanto, um saber específico, que exige familiaridade com sua estética e seus códigos — algo que o rapsodo domina.
A estrutura do Íon revela também as limitações da dialética platônica quando aplicada à arte. Platão, ao construir uma narrativa com um interlocutor fraco e submisso, reforça suas próprias teses em detrimento de um debate real sobre o valor da performance. Isso limita o alcance da dialética como ferramenta de diálogo, pois ela se torna um monólogo disfarçado de questionamento. Para o mundo moderno — que valoriza múltiplas formas de conhecimento, inclusive sensíveis e intuitivas — essa limitação é relevante. A performance artística é vista hoje como um espaço de saber e de transformação social, algo que a rigidez argumentativa de Platão não reconhece.
A inspiração artística, longe de ser irracional ou inferior, é uma via legítima para o conhecimento e para a experiência humana plena. A emoção, o mito e a estética desempenham papéis fundamentais na formação do indivíduo e da cultura. A recusa de Platão em reconhecer isso denuncia seu temor do poder transformador da arte. Gentile sugere que, se o personagem Íon fosse construído como um interlocutor mais forte, ele poderia ter defendido a arte como uma via de acesso ao sagrado, ao imaginário e à verdade —— não inferior à razão filosófica, mas complementar a ela.
Considerações finais
Os caminhos para além do hiperracionalismo de Sócrates podem ser traçado a partir dessa introdução em três partes. Talvez tenha parecido que ela abre mais questões do que responde, e essa não é uma impressão errada. Platão deixou um mundo de referências e problemáticas que serviram de cenário para desenvolvimentos da filosofia a partir da Era Helenística, e que, como repetidamente pontuado, perfaz o ambiente de onde surgiu o cristianismo, o judaísmo rabínico e a tradição esotérica.
Termino este artigo de forma inconclusiva, com duas citações:
"Inspiração divina desmitologizada se chama serendipidade". (David J. Melling. Understanding Plato. Oxford: Oxford UP, 1987, p. 61).
"Tendo bebido uma caneca de cerveja no almoço — a cerveja é um sedativo para o cérebro, e minhas tardes são a parte menos intelectual da minha vida —, saí para caminhar por duas ou três horas. Enquanto andava, sem pensar em nada em particular, apenas observando o que me rodeava e acompanhando o desenrolar das estações, surgiu em minha mente, com uma emoção súbita e inexplicável, às vezes um verso ou dois, outras vezes uma estrofe inteira de uma só vez, acompanhados — não precedidos — por uma vaga noção do poema do qual eles fariam parte. Em geral, seguia-se então uma pausa de uma hora ou mais, até que talvez a fonte borbulhasse novamente. Digo 'borbulhar' porque, pelo que eu pude perceber, a origem dessas sugestões oferecidas ao cérebro era um abismo que já tive ocasião de mencionar: o poço do estômago. Ao chegar em casa, eu anotava os versos, deixando lacunas e na esperança de que mais inspiração pudesse surgir em outro dia. Às vezes ela surgia, no caso de eu caminhar em um estado de espírito receptivo e expectativo; mas outras vezes o poema precisava ser retomado e concluído pelo cérebro, algo que tendia a ser um processo penoso e cheio de ansiedade, que envolve tentativa e erro, e às vezes resultando em um fracasso. Acontece de eu me lembrar claramente do surgimento do poema que aparece por último no meu primeiro volume. Duas das estrofes — não direi quais — vieram à minha cabeça, exatamente como estão impressas, no momento em que eu atravessava a esquina de Hampstead Heath, entre o Spaniard's Inn e a trilha para Temple Fortune. Uma terceira estrofe veio com um pouco de insistência depois do chá. Faltava mais uma, mas ela não veio: tive que me dedicar a compô-la, e esse foi um trabalho árduo. Escrevi-a treze vezes, e levou mais de um ano até que eu acertasse." (A. E. Housman. The Name and Nature of Poetry. Cambridge: Cambridge UP, 1935, p. 49-50).
O poema em questão é:
LXIII (em "A Shropshire Lad", de A.E. Housman, 1896, tradução minha)
Plantei, cavei e fiz a roça.
levei as flores à feira:
em vão, as trouxe de volta –
não tinham as cores da moda.
Verti suas sementes por toda a parte,
P'ra alguém como eu encontrá-las,
Quando, há muito, estiver enterrado
em uma campa não identificada.
Algumas alimentam os pássaros
Outras sucumbem com a estação,
Mas aqui e ali uma brota
Como estrela arredia no chão.
E a cada ano uma flor dessas nasce
nos campos, pela primavera;
E caras sem sorte hão de colhê-las
Quando eu não estiver nesta Terra.
Apêndices
Traduzido do esquema presente na edição alemã: Platon. Sämtliche Werke, Band 1. Übersetzt von Friedrich Schleiermacher. Reinbek bei Hamburg: Rowohlt Verlag, 2015, p. 65.
ÍON
A. Introdução
Dignidade dos rapsodos. Seu ofício de interpretação
B. Parte Principal
- Como o rapsodo compreende?
- Limitação da habilidade de Íon relativa a Homero
- O reconhecimento do que é qualitativamente diferente no ofício do especialista
- A habilidade dos rapsodos não se pauta no conhecimento
- A inspiração poética
- O arrebatamento místico dos rapsodos
- Os efeitos do poder divino
II. O que o rapsodo compreende?
- Cada arte possui um objeto específico
- A avaliação das artes descritas em Homero cabe ao especialista
- O que o rapsodo reconhece melhor?
- A arte do rapsodo é idêntica à do general?
C. Conclusão
- General impedido e intérprete divino
Referências bibliográficas
- Suzanne Stern-Gillet. "On (Mis)interpretating Plato's Ion". Phronesis, Vol. 49, No. 2 (2004), p. 171.
- "Há, portanto, um inverso em virtude do qual o homem essencial supera o Ser, torna-se idêntico ao Transcendente do Ser. Com o eu assim elevado, somos semelhantes ao Supremo [...]" (Plotinus. The Six Enneads, trans. Stephen MacKenna and B. S. Page. London: Encyclopedia Britannica, 1952, p. 360).
- "Tanta autem in contemplanda veritate voluptas est, quantacumque ex parte eam quisque contemplari potest, tanta puritas, tanta sinceritas, tam indubitanda rerum fides, ut neque quidquam praeterea scisse se aliquando aliquis putet, cum sibi scire videbatur; et quo minus impediatur anima toti tota inhaerere veritati, mors quae antea metuebatur, id est ab hoc corpore omnimoda fuga et elapsio, pro summo munere desideretur."