07/12/2025, por F.V.Silva
Contexto
Na filosofia antiga existe uma extensa discussão sobre os usos ornamentais da linguagem, e acho que essa desconfiança nunca desapareceu de nossa cultura. Tente conversar diretamente com um político eleito: ele fala a partir de um roteiro; sempre conta vantagem das coisas boas que fez para a população, está sempre prometendo uma prosperidade futura caso você trabalhe junto com ele. Ele não olha no seu olho e fala para você, de igual para igual, e isso irrita as pessoas. O camarada está a todo momento se defendendo, ao que parece, tentando se livrar do fardo da comunicação direta, livre, que por excelência está aberta a riscos e descobertas. A fala humana é um poder inigualável de nossas subjetividades para expressar nossas inteligências, mas eis que esse indivíduo optou por acorrentá-la a frases prontas, a um treinamento para mídia só para proteger sua imagem. Para ele, a retórica é mais importante que a busca pela verdade ou comunicação imediata entre pessoas.
Na Grécia Antiga, Sócrates era o inimigo declarado dessa forma de comunicação – sua famosa briga contra os sofistas tem origem aqui. Ele cresceu em uma Atenas em que a grande moda das pessoas livres educadas era se treinar em um tipo de retórica, no aprender a falar bonito, de forma parametrada, às vezes para passar a perna nos outros; para conseguir o que você quer. Para ele isso representava um regresso da inteligência humana, mesmo do progresso de sua cidade – era reduzir o potencial de uma ferramenta única dada pelos deuses, a fala e a racionalidade, a um jogo de perspicácia. O uso da linguagem devia servir à verdade, à averiguação da inteligência compartilhada e dos nexos do mundo. Mas a cultura retórica de Atenas ia na outra direção: quem era mais malandro, ou pagava mais cursos de retórica para aprender a superar os outros na lábia, vencia.
Fedro é um diálogo platônico privilegiado para entendermos sua posição madura frente às armadilhas da retórica e do falar bonito; como tudo em Platão, ele não é um diálogo sobre uma só coisa. Edições modernas menos cuidadosas vão tentar vende-lo como "o diálogo de Platão sobre o amor" ou qualquer coisa do tipo, e o amor até é um tema aqui. Mas também é reencarnação; também é a retórica e o potencial educador da arte; e aqui encontramos um esboço de uma psicologia da Antiguidade clássica que será de suma importância para os colegas das ciências da mente. Este episódio trará um comentário sobre tudo isso, e citarei trechos de Fedro a partir da edição portuguesa traduzida por Jesué Pinharanda Gomes (Lisboa: Guimarães Editores, 2000).
Φαῖδρος
Contexto
O diálogo começa em Atenas. Lá, um indivíduo chamado Fedro ouve um discurso do famoso orador Lísias na casa de um poeta famoso, Morico. Por acaso ele encontra Sócrates nos arredores da cidade. Lísias diz ter ficado profundamente impressionado pelo conteúdo poderoso daquele discurso e ter decidido sair para um passeio no campo, sozinho, para refletir. Sócrates desconfia de que aquilo é bobagem, e resolve acompanhá-lo para questioná-lo. No calor da manhã, eles se sentam à margem do rio Ilisso, ao sul das muralhas da cidade, e ali é onde boa parte do diálogo filosófico ocorre. O lugar é identificável pela referência indireta ao santuário próximo do deus Pã: aquela é uma região selvagem, já longe do espaço da cidade e, por extensão, da esfera controlada pelo ser humano, pela racionalidade. Sócrates afirma não se sentir muito em casa longe da cidade, já que sua missão é uma missão de aperfeiçoamento de sua essência racional; ele não tem nada que ver com a natureza e suas regras.
Pois bem, Fedro é um admirador da retórica de Lísias, e trouxe consigo o manuscrito do discurso que ouviu. Ele achou tão interessante que está disposto a tentar decorá-lo. Ele é como alguém impressionado por um novo autor que descobre, ou por um professor que comunica aquilo que ele sempre quis ouvir, mas nunca conseguiu articular. Embaixo de uma árvore, ele tenta contagiar Sócrates com a mesma impressão -- e ele vai fracassar terminantemente, como veremos.
O discurso de Lísias é um discurso subversivo sobre o amor. Talvez por decepção amorosa, talvez por conclusões pessoais, Lísias retrata a relação amorosa como uma forma de violência e loucura. "A ternura do lobo por um cordeiro; eis a imagem exata do amor que os apaixonados sentem..." (241d). Então ele se põe a argumentar que é mais vantajoso conceder favores sexuais a alguém que não está apaixonado por você por alguns motivos. Os principais são estes: a paixão é sempre algo passageiro e, uma vez que se esfria, o amante se arrepende dos benefícios concedidos; uma pessoa que não está apaixonada age por livre escolha e é mais confiável; o amante é egoísta, ciumento, controlador, tende a isolar o amado, perde a capacidade de julgamento racional e é um mau conselheiro.
A Primeira Fala de Sócrates e sua Autocrítica
Sócrates não fica tão impressionado; embora as palavras tenham sido bem selecionadas por Lísias, as ideias não foram (234e). Então ele próprio improvisa um discurso alternativo para questionar a universalidade da afecção artística: "não é porque um discurso te impressiona que vai impressionar todo mundo". Essa é a fragilidade inicial da peça de retórica (e, por extensão, da arte): ela não só fracassa em comunicar uma verdade universalmente reconhecida, como também não afeta todas as pessoas igualmente. Ao que tudo indica, esse tipo de registro tem valor só para quem já concorda com suas opiniões de antemão; não há nada de universal aqui.
O discurso de Sócrates é de improviso, e no final ele mesmo vai se censurar por contar algo à toa. "Horroroso é [o discurso que me obrigaste a pronunciar!" (242d) Ele está jogando um jogo aqui: vai apresentar uma história que, em seu íntimo, saiba conter algum problema argumentativo, para sondar a opinião de Fedro e treinar seu rigor filosófico.
A história que ele contrasta à de Lísias começa com uma sátira: ele tira sarro dos poetas emulando a evocação das musas, e pede aspiração do além para que seu discurso seja conduzido o mais rápido possível, para que não passe vergonha. (Como vimos em Íon, Sócrates não cai nesse papo de aspiração divina que poetas atribuem a si).
Sua história apresenta um amante astuto e mais velho de um jovem rapaz. E esse cara finge não estar apaixonado para poder seduzir o jovem. Ele próprio o aborda e tenta convencer, como seu pretendente secreto, que essa coisa de se apaixonar nunca dá certo. E ele justifica: em partes isso se dá porque as pessoas nem se questionam sobre o que é a atração amorosa por outro indivíduo. "Pessoas comuns não são capazes de ver que não conhecem a verdadeira natureza de um assunto particular, de forma que procedem como se conhecessem; e porque elas não chegam a um consenso logo de início de sua investigação, elas partem daquilo que é esperado -- em conflito consigo mesmas e com a outra". (237c) Para não cometer o mesmo erro, esse veterano continua seu xaveco explicando o que ele entende por amor: o que é o amor, e qual efeito ele tem. "O amor é algum tipo de desejo" -- com isso todo mundo concorda; mas "mesmo homens que não estão apaixonados têm desejo por aquilo que é belo". (237d). Segundo dado: há dois princípios que nos guiam pela vida e nos fazem ir atrás das coisas: o primeiro é nosso "desejo inato por prazeres, o outro é nosso juízo adquirido [ou seja, treinado] de perseguir aquilo que é o melhor". E às vezes esses dois princípios concordam: aquilo que desejamos é a coisa ou pessoa que buscamos para melhorar nossas vidas. Às vezes não; e isso nos levará à natureza delirante do amor. Amor é uma espécie de patologia, um vício, e deve ser visto como tal, justamente porque resulta de um desbalanço entre esses dois princípios, mas não busca a solução para eles. Então, há uma porção de palavras para definir vícios: a gente chama de glutão um camarada que não controla seu desejo por comida. A ponto de a ingestão de alimentos fazer mal para a saúde dele. O mesmo para bebidas alcoólicas. Quando o assunto é o desejo pela beleza de corpos humanos, a gente o chama de erôs.
Quando chegamos no relacionamento entre um homem veterano e um garoto menor de idade (algo socialmente aceito e recomendado entre gregos áticos daquela época, como vocês sabem), um amante apaixonado é um problema: ele é um "escravo do prazer que tornará seu garoto em qualquer coisa que o dará maior prazer" (238e). Seu comportamento vicioso começará a se revelar aqui: ele fará questão de manter esse amante depende de si (financeiramente, emocionalmente); fará de tudo para afastá-lo de amigos e família, valendo-se de ciúmes e jogos psicológicos, tudo para garantir que o terá disponível para saciar seus desejos quando quiser. Sócrates está descrevendo o que o século 21 tem chamado de relacionamentos tóxicos -- essa não é uma novidade na história humana, e para ele, neste primeiro momento, o risco de um relacionamento recair nesse estágio doentio é argumento suficiente para o jovem ceder a um veterano que não o ama: não manter um compromisso é o melhor caso para seres humanos, tendo em vista a natureza violenta de todo desejo.
Seu desfecho é o seguinte: "a amizade de um amante surge sem qualquer boa vontade. Não, como comida, seu propósito é saciar a fome. 'Será que lobos amam cordeiros? É da mesma forma que amantes se afeiçoam de um garoto!"
No final, porém, Sócrates interrompe a fala, alertado por seu "daimon" (voz interior) de que cometeu um erro ao difamar Eros, uma divindade, apresentando todos os amantes como maus. Ele decide reparar o erro com um novo discurso em louvor ao amor e solta o primeiro princípio para guiar seu discurso: "se o Amor é, como de fato é, um deus, não pode ser origem de coisas más" (242e).
O universo socrático é pré-monoteísta; os gregos não entendiam deuses como autoridades cósmicas que precisam ensinar uma doutrina aos seres humanos (o conceito de revelação inexiste na religião grega): deuses são expressões de forças misteriosas que constituem a natureza. A deusa do amor, Afrodite, gerou Eros, o deus do desejo, e esse é o impulso erótico transformado em uma personagem de mitologia -- mas para um grego, ele era entendido também como tudo o que sabemos e entendemos do impulso erótico que compartilhamos como seres humanos de certa faixa etária. Eros não é uma criatura mágica que vai aparecer para nós e interferir de modo pessoal no mundo humano. Ele já determina esse mundo suficientemente; então, ao dizer que está blasfemando contra os deuses, ele diz: nossa abordagem é equivocada pois estamos explicando a atração entre duas pessoas como se não houvesse uma motivação natural para atração física -- uma explicação biológica mesmo, que herdamos do processo evolutivo (é claro que Sócrates não tinha uma perspectiva evolutiva da espécie humana, mas a existência de instintos contrários em nós é um fato da natureza. O papel de um pensador não é simplesmente criticar as agruras dos sentimentos amorosos a nível ideal; é entender porque as pessoas se transtornam por causa de amor.
Então Sócrates tenta mais vez: ele formula uma segunda fala, que já é uma forma de pedagogia para o jovem Fedro: ele está mostrando a dialética em movimento -- o pensamento que testa suas premissas, se aperfeiçoa, se corrige, e tenta cavoucar o mistério da existência com rigor e objetividade. E, para nós, esse momento da fala socrática é fascinante: ele propõe a reabilitação do amor e constitui a primeira inovação daquela teoria da Theia Mania -- da loucura inspirada, de origem divina, sobre a qual ele despejou críticas no diálogo anterior Íon, desvalidando por completo a arte dos poetas como uma arte irracional. Theia Mania era uma ideia enraizada na visão de mundo grega, de novo: eram momentos em que os deuses influenciam os afetos humanos e parecem mudar uma pessoa. Pensem isso menos como uma possessão demoníaca de filmes de terror veladamente católicos, como O Exorcista, e mais como a justificativa que damos para uma pessoa que tem um talento fora do comum. Que tem um lampejo de clareza e encontra uma solução para um problema que ninguém encontra. Esses são os deuses atuando para os helenos.
E Sócrates inicia sua nova história com a seguinte constatação: os antigos estavam certos ao valorizar as artes do augúrio: as artes das profetisas de Delfos e das sacerdotisas de Dodona. Ele enumera vários exemplos de "artes delirantes", derivadas do transe, como prova de que muitos de nossos bens mais preciosos nascem de uma loucura inspirada pela esfera do divino. Isso é parte da cultura grega, e mesmo as pessoas que hoje seriam hospitalizadas como insanas, no mundo grego muitas vezes eram respeitadas e vistas como pessoas tocadas pela esfera do divino. Talvez devêssemos prestas atenção nelas.
Em suas explanações, Sócrates faz constantes menções ao conceito de pronoia (providência, cuidado divino), que mais tarde se tornaria central no neoplatonismo e no gnosticismo. Ele então identifica um terceiro tipo de loucura válida e benfazeja: a inspiração artística, que ornamenta nossas vidas com música boa, literatura cativante, com a arquitetura magnífica que doa o caráter ao nosso povo. Isso não deriva da racionalidade, pura, e se nossa premissa estiver certa -- de que o amor, em todas as suas contradições, e outras formas de delírio inspirado advém da mesma fonte, da própria natureza, dos deuses -- então temos que revisar nossa opinião negativa sobre o valor do amor.
Sócrates acha encontrar um próximo caminho para a conversa em uma investigação sobre a constituição de nossas almas. Este será um dos mitos mais famosos do córpus literário platônico, vocês encontrarão sob o título o Mito das Almas, e ele começa no trecho 245c:
Sócrates define a alma como "aquilo que se move a si mesmo". Não só seres humanos têm almas, mas todas as coisas que se movem por conta própria. Sua argumentação prossegue: "Corpos movidos por um agente exterior são inanimados, enquanto o corpo movido de dentro é animado, pois que ele é o movimento e natureza da alma". Neste momento, Sócrates está construindo uma ligação fundamental entre erôs e um princípio vital imanente que habita nossos corpos -- não entedamos erôs como algo mágico, que só existe para perturbar nossas noites de sono enquanto pensamos naquela pessoa desgraçada que desejamos tanto; erôs é o princípio movente de todas as coisas. Sócrates soa quase científico aqui; ele despersonaliza uma discussão sobre um afeto humano para situá-la em uma discussão mais ampla, que visa uma compreensão da alma humana. E alma, pros gregos, = mente -- é a mesma palavra psychê, de onde veio o termo psicologia. Não há de nada de exclusivamente espiritual aqui.
Esse princípio movente se traduz em diferentes espécies de formas particulares: erôs é o que faz uma planta despejar seiva e expandir suas raízes pelo solo, em busca de nutrientes; que faz o corpo de um animal doente combater contra uma doença que o assola, e o leva a recobrar sua saúde. É o que faz um garoto à beira da adolescência vencer sua aversão irracional às meninas e começar a olhá-las com um interesse renovado, que o faz tentar entende-las em sua própria cultura infantil e complexidade. E é o impulso erótico em adultos -- é a parcela de instinto em nós que nos faz dar uma volta completa nas nossas vidas e imagens pessoais para gerar bebês e famílias. É a natureza atuando através dos corpos dos animais para se propagar, para executar sua autopoiesis, se pensarmos holisticamente, mas é simultaneamente a sua história de amor pela Carmem, pela Gertrudes, pelo Paulo. E esse afeto entra em contradição com nossa parcela racional, dirá Sócrates. Ele é contraditório só seres humanos, sugestivamente -- na passagem 246a-b, Sócrates introduz a famosa comparação da alma/mente humana com uma parelha de cavalos alados, conduzidos por um cocheiro. Há um cavalo bom que está ligado ao divino (representando talvez a parcela de nossos instintos mais nobres, racionais), ao passo que há também um cavalo chucro, rebelde, que está ligado ao material e aos desejos inferiores. O cocheiro humano que deve guiar esses dois animais tão diferentes é você mesmo, a razão que tenta harmonizar as forças conflitantes. Para complementar, em 246d ele explicará quão difícil é entender o princípio divino. Ele não usará o panteão grego, os deuses do Olimpo como conhecemos, mas o explicará via um argumento clássico da teologia negativa: "Quanto ao [elemento] imortal [em nossas almas], não é coisa que possamos explicar de forma racional, mas podemos conjecturar, mesmo sem experiência e sem suficiente intelecção, a ideia de Deus: um ser vivo imortal que possui uma alma, que também possui um corpo, ambos unificados por uma duração eterna, o que depende da vontade da Divindade." Rá! Isso é Plotino seis séculos mais tarde. Isso é teosofia. A natureza é o princípio divino despersonalizado; nós somos instanciações dele. Para mim é surpreendente como uma ideia teológica já secular, já pós-teísta, está formulada numa conversa fugaz entre Sócrates e Fedro; pessoas escreveram bibliotecas inteiras para lidar com essa ideia de espiritualidade profundamente polêmica que, em Platão, fica jogada para você fisgar e desenvolver por conta própria.
E a gente pensa essa espécie de psicologia aqui proposta como derivação de uma constatação sobre a posição solitária da espécie humana no concerto da vida: por ter adquirido consciência de si, e conseguir ao menos se esforçar para encontrar métodos para alçar sua mente à racionalidade que governa o mundo -- o que Platão chama de Mundo das Ideias e Plotino de Nõus, de esfera noética -- o ser humano se singulariza. Ele o cérebro da natureza; sua ciência vira uma câmera que, apesar de suas limitações, é capaz de contemplar alguns quadros da cabine de comando da natureza. Animais e plantas vivem existências despreocupadas; eles vivem em paz com a realidade de sua própria finitude, e aceitam sua morte como mais uma fase programada de suas pequenas existências. O animal não vasculha o real, não questiona porque o Sol nasce: ele se restringe a contemplá-lo, com uma satisfação e certeza de estar em casa em toda parte que eu, pessoalmente, invejo. Seres humanos maduros trocariam qualquer embriaguez, qualquer união desesperada com outros corpos, por essa paz. E Sócrates não está racionalizando isso; nesse momento ele só constata a cisão constitutiva de nossas almas como o ponto de partida para uma psicologia. A partir daí, ele soará extravagantemente metafórico: ele questiona as causas que levam a alma a perder suas asas -- para ele, somos mentes dissolvidas no todo do universo, e essa é nossa verdadeira casa. Então, será que devemos ler essa metáfora como uma analogia à nossa instanciação na esfera da matéria? As asas são justamente o que elevam a alma à esfera do divino. Em 247c-d, ele descreve a meta de todo ser humano como uma volta a sua natureza primeva, onde essa cisão entre instintos e razão estaria resolvida provisoriamente: "a realidade que realmente não tem cor, nem rosto, e se mantém intangível; aquela cuja visão só é proporcionada ao condutor da alma pelo intelecto; aquela que é patrimônio do verdadeiro saber, é essa verdade que ocupa efetivamente aquele lugar." Essa esfera de verdades fica além de nossas possibilidades. O drama humano continua sendo aquele de almas atrasadas pelo cavalo chucro e que, como consequência, só contemplam de longe a esfera divina: "como não conseguem dominar a desarmonia dos corcéis, apesar de verem algumas realidades, mas não conseguem ver outras." Aqui estão as possíveis origens do fracasso na contemplação do Divino.
Os trechos seguintes são, sinceramente, confusos para mim. Ele postula a Lei da Adrástea, e a doutrina da reencarnação, que para os gregos foi formulada por Pitágoras, lá no século 6 AEC. Esse trecho me confunde pois ele não acrescenta muita coisa a essa tentativa de formular uma psicologia elementar: Sócrates só está reproduzindo crenças populares dos gregos sobre a lei do destino (essa é a Lei de Adrástea de 248c) e da reencarnação (com menção a 9 esferas da existência das almas desencarnadas que retornam após dez mil anos). Eu não sei o que fazer com isso, e embora sejam indícios importantes da ideia de reencarnação fora da Índia antiga, já no século IV AEC, eu deixo como recomendação dois episódios do podcast SHWEP, um sobre reencarnação em Pitágoras, outro em Platão, e vocês pesquisam mais se quiserem).
A discussão retorna ao amor em 252b, abordando as formas de disposição para encarar o mundo -- o amor é uma delas. Surge a ideia do amor como uma atração por algo para o qual já se está predisposto (252e): essa é uma curiosa teoria das personalidades. Pessoas nascem com disposições distintas, e essas disposições as guiarão com base em sua ligação com um deus ou deusa do Olimpo. Ele diz: "Os que se integram no cortejo de Hera, esses procuram alguém com qualidades régias [...]" (253b). Por extensão, haveria pessoas coléricas ligadas ao Deus Ares, e pessoas sistemáticas ligadas a Apolo; autoritária ligadas a Zeus? Não dá para saber se Sócrates só está esboçando um sistema de personalidades ou reproduzindo o senso comum dos gregos. Mas uma coisa é certa: cada uma dessas pessoas sofre da mesma cisão constitutiva e explicada pela parábola do cocheiro. E todas terão que aprender a lidar com erôs em suas vidas. O paradoxo do amor é abordado em 255d-e, e repete uma prerrogativa do primeiro discurso de Sócrates: é preciso "amar sem que se conheça o amante" -- essa é outra precondição da sociabilidade humana; não temos acesso à individualidade de outra pessoa. Cada um está trancado no hospício da própria mente, tentando lidar com um influxo de respostas e estímulos já difícil de entender.
Sócrates fecha sua crítica a Fedro de forma magistral aqui: ele, eu cito, "ainda não percebeu que Lísias caracteriza o amor como relação de posse. Sócrates busca, com cuidado, deixar claro que tal teoria desconsidera a dignidade humana e, apesar do prazer temporário, em última análise, continua a ser um caso desagradável, uma vez que se manifesta emocionalmente como ciúme, por exemplo" ["hat noch nicht bemerkt, dass Lysias Liebe als Besitzdenken charakterisiert. Sokrates will ihm vorsichtig deutlich machen, dass eine solche Theorie die Würde des MEnschen missachtet und trozt zweitweiligen Vergnügens letztendlich eine unappetitliche Angelegenheit bleibt, wie sie zum Beispiel emotional als Eifersucht zu Tage tritt." (Gardeya, Peter. Platons Phaidros: Interpretation und Bibliographie. Würzburg: Königshausen und Neumann, 1998, p. 13)] A discussão de um tema singular como amor exige uma compreensão sobre todas as partes que o envolvem: a mente humana, em sua complexidade, a dignidade e interesse de seres humanos, as múltiplas formas como esse sentimento se manifesta. E nem todo relacionamento amoroso é tóxico. A humanidade simplesmente desistiria de relacionamentos duradouros se fosse o caso; a peça de retórica de Lísias, portanto, fracassa como tentativa de abordar seu tema. Toda retórica ou arte que não se alce em um esforço rumo ao universal está fadada ao fracasso -- e essa é uma ampliação importantíssima da concepção de arte em Platão.
Essa questão central é abordada a partir de 259e : o que significa verdadeiramente saber escrever e recitar um discurso? As implicações dos discursos anteriores sobre o amor são revertidas em uma conversa sobre a estrutura de uma argumentação, dando a impressão que Sócrates nem estava tão interessado em falar sobre erôs e a psicologia humana: ele queria mostrar como Lísias era superestimado em Atenas. Mais um balde de água fria por parte de Platão. E fica claro que a retórica, para Sócrates/Platão, não é um fim em si mesmo. Ela deveria se reverter, antes, em uma psicagogia -- "uma arte de conduzir as almas através das palavras."
E eis que Sócrates tenta ensinar a Fedro como julgar um discurso por seu conteúdo. Ele descreve duas operações fundamentais: "A primeira consiste em abarcar de uma só vez, graças à visão de conjunto, as ideias disseminadas, a fim de que, pela definição de cada uma dessas ideias, as possamos resumir em uma só ideia geral do assunto que se tem em vista tratar; (...)" A segunda é "(...) dividir novamente a ideia geral nas ideias particulares suas constituintes, observando-as nas suas articulações naturais, evitando, todavia, mutilar essas partes constituintes (...)". Este é o método da divisão e recolhimento (diairesis e synagoge), que vimos em seu segundo discurso (com toda aquele papo da natureza dual da alma humana e sua fonte na natureza dos seres moventes). O discurso de Lísias só traz um caso particular: ele não se pauta em uma teoria coerente sobre o amor, se reduzindo a uma reclamação ranzinza sobre como sexo livre evitaria a frustração dos fracassos amorosos.
A partir daí, Sócrates falará mal do sistema jurídico de Atenas, formulará, no Mito de Thot (274e), uma crítica inesperada contra a logografia (o registro escrito de discursos, algo que Platão está fazendo ao escrever um livro), mas sempre reafirmando a máxima da dialética: a escrita está desvinculada do pensamento vivo. Ela registra só um quadro do pensamento em movimento, o momento em que o filósofo chegou a dada conclusão, e isso não substitui a necessidade de nós, pensadores apaixonados pelo saber, atualizarmos esse pensamento a todo instante. Nossas almas, afinal, são carruagens, e algo sempre puxa essa carruagem para baixo: nossa ignorância, instintos, vieses, a cegueira de nossas épocas -- de forma que só idealmente temos acesso à esfera das coisas como elas são. Um método de pensamento rigoroso não pode perder essa realidade de vista em ponto algum.
Vamos fazer um balanço: Sócrates atualiza o conceito de "theia mania" (loucura/êxtase divino) de um diálogo como Íon (Íon é provavelmente de 399 AEC, Fedro de 370 AEC, mesma época da República). Este diálogo mais maduro argumenta que nem toda loucura é negativa; pode se tratar de uma inspiração divina, como a das profetisas ou dos poetas. Para entender o amor, é preciso entender a alma. Ele a descreve como imortal (i.e. partilhadora da esfera noética) e automovente.
A beleza terrena é a única Forma visível no mundo físico -- aqui ela não é uma fonte de ilusão, mas um primeiro contato com a esfera noética (essa ideia será central para a arte sacra do Catolicismo posterior, e para os Romantismos europeus). Ao avistar um belo corpo, a alma recorda-se da Beleza ideal que viu no lugar supra-celeste. Essa rememoração desperta uma ânsia intensa. Esse processo é ao mesmo tempo alegre e doloroso, uma agitação extrema que é a verdadeira mania erótica -- no sentido um êxtase divino, não de tesão. O efeito desse amor depende da natureza da alma do amante (associada a um deus específico/personalidade) e de sua capacidade de governar seus impulsos interiores. Se o cocheiro (razão) e o cavalo nobre conseguirem dominar o cavalo chucro (desejo irracional), o par pode alcançar uma vida comum de amor filosófico e busca da virtude.
Consequências e Discussão sobre a Retórica
Fedro fica profundamente impressionado com Sócrates, colocando-o acima de Lísias (filosofia vence a sofística, mais uma vez). Isso leva a uma discussão sobre a natureza da verdadeira retórica. Sócrates critica a abordagem meramente persuasiva e pragmática de Lísias (que busca convencer independentemente da verdade). Em contraste, defende que a verdadeira retórica é uma "arte" (technê) de guiar almas, que deve estar fundamentada no conhecimento da verdade e na psicologia (conhecimento da alma e seus tipos) -- contra tudo que lemos em Íon, arte e retórica são technés aqui! Um bom discurso deve ser uma unidade orgânica, como um corpo vivo, construído através do método científico-dialético (com divisão e síntese conceitual), algo que ele demonstrou em seus próprios discursos ao definir o amor como um tipo de "mania" e depois dividi-lo em suas formas humana/doentia e divina/inspirada. A técnica retórica isolada, sem compreensão da verdade e da estrutura lógica, é inútil e ridícula. Um escritor que escreve sobre o que não conhece profundamente é como um médico farsante que conhece o nome dos remédios, mas não sabe quando ou para quem aplicá-los.
Psicagogia foi o termo que ressaltei no título desta apresentação, e ela servirá de guia para boa parte das ideias de arte no neoplatonismo e da patrística. A desconfiança da patrística frente ao teatro e à ficção narrativa dos pagãos será rebatida com uma noção de psicagogia cristã: discursos de caráter mitológico ou ficcional (como é parte significativa dos livros sagrados do mundo todo) serão justificados como divinamente inspirados, numa chave muito parecida com a de "Fedro". Este é o diálogo que dá abertura a uma compreensão devida da arte sacra, por exemplo: A beleza material (de uma pintura, uma escultura, um vitral, um canto gregoriano) não é uma distração perigosa, mas uma ferramenta pedagógica e devocional dada por Deus. Ela deve elevar a alma do fiel do visível ao invisível, do material ao espiritual.
No mundo islâmico, algo semelhante ocorre: embora a tradição islâmica proíba a figuração de Deus, ela buscou a beleza em formas não-representacionais. Assim, a caligrafia árabe (que transcreve a palavra divina do Alcorão), mais os padrões geométricos e arabescos da arte e arquitetura islâmicas, tornam-se janelas para a esfera transcendental, para o espiritual. Neles, busca-se uma beleza de ordem, proporção, ritmo e infinito que reflete a harmonia, a racionalidade e a unidade da criação divina. Esta é uma tradução abstrata de um ideal platônico de beleza como ordem e harmonia matemática (também ligada ao diálogo platônico Timeu, sobre o qual ainda temos que falar).
Referências
- Gaiser, Konrad. Das Gold der Weisheit. Zum Gebet des Philosophen am Schluss des 'Phaidros'. Rheinisches Museum für Philologie, Band 132, Heft 2, 1989, p. 105-140.
- Gardeya, Peter. Platons Phaidros: Interpretation und Bibliographie. Würzburg: Königshausen und Neumann, 1998.
- Platão. Fedro (trad. Jesué Pinharanda Gomes). Lisboa: Guimarães Editores, 2000.
- Plato. Complete Works. Ed. by John M. Cooper. Indianapolis: Hackett, 1997.
- SHWEP. Coming Back for More: The Secret History of Reincarnation in the West, Part I: Pythagoras and the Orphics. June 4, 2025. https://shwep.net/oddcast/coming-back-for-more-the-secret-history-of-reincarnation-in-the-west-part-i-pythagoras-and-the-orphics/
- SHWEP. Coming Back for More, Part II: Platonic Reincarnation. June 5, 2025. https://shwep.net/oddcast/coming-back-for-more-part-ii-platonic-reincarnation/