Escrito por F.V.Silva
Nos textos anteriores, a filosofia de Plotino foi apresentada como uma filosofia da consciência humana mais complexa do que muitas vezes se espera de filosofias da Antiguidade. Plotino tem considerações intrigantes sobre a divisão entre nossa mente em uma parte consciente e outra inconsciente, entre uma parte ligada a nosso corpo e seus instintos, e outra parte eterna, ligada a alguma outra esfera que não pode ser a material — ele parte disso para fazer uma filosofia geral da existência, e ligar essa nossa parte imaterial a uma inteligibilidade cósmica e universal que regulamenta as leis da natureza, as verdades conceituais, a harmonia do cosmos e tudo o que existe nele. Nossa mente individual, em suma, é uma parcela de um Todo indivisível que as religiões diversas chamarão de deuses, ou Titãs, o seja lá o que o valha.
Plotino está escrevendo filosofia, não exatamente uma doutrina religiosa; mas um sucessor seu, Proclo, será quem proporá que, no fundo, essa doutrina é uma substituta para todas as religiões. Ela é uma religião filosófica superior. Na medida em que os credos dos vários povos do mundo se baseia em mitologia, história dos deuses e seus consortes para contar uma verdade intuída sobre o funcionamento das coisas, eles estão certos e são válidos, para Plotino. Mas eles sempre passam longe de explicar devidamente essa verdade. Cristianismo, mitraísmo, judaísmo, religião olímpica e hermetismo eram todos sistemas teológicos vigentes naquela época, e Plotino é um pensador difícil de entender pois em nenhum momento ele comenta essas religiões para expor suas ideias — ele nunca descreve o mundo histórico, ou eventos ocorrendo no Império Romano. Sua filosofia é puramente abstrata, porque ele entende que as coisas abstratas, para além do mundo físico e histórico, são aquelas que vale a pena discutir. Há um breve ensaio contra os gnósticos onde ele discorre sobre os erros de uma seita histórica que existiu no século III EC: e ele só menciona ela para defender sua própria doutrina do To Hen, ou do Uno.
Apesar dessa dificuldade, é possível afirmarmos certas coisas sobre a religião de Plotino. E o melhor modo de fazê-lo é entendo como ele atualiza Platão; Plotino complica o modelo de consciência de Platão em dois momentos centrais, e essa comparação dupla, Platão vs. Plotino será a tarefa do presente artigo.
Tomarei como ponto de partida o mito mais famoso de toda a história da filosofia, o Mito da Caverna que Platão descreve na República, Livro VII. Esta é uma alegoria que geralmente professores de filosofia utilizam para explicar o objetivo do treinamento filosófico: nosso ponto de partida, a condição humana em si, é uma condição onde estamos aprisionados a ilusões. Platão descreve como, acorrentados no fundo de uma caverna, há uma porção de prisioneiros que só enxergam sombras projetadas por uma fogueira, tomando-as pela realidade. Quando um deles é libertado e arrastado para fora, a luz do sol o cega e o confunde —- mas, aos poucos, ele compreende que o mundo exterior, iluminado pelo sol, é a verdadeira realidade. Seu retorno à caverna, porém, é recebido com hostilidade: os outros prisioneiros, afeiçoados às sombras, rejeitam sua revelação (514a-517a).
Platão usa essa imagem para ilustrar o caminho dialético da filosofia: a ascensão das aparências sensíveis (as sombras) às formas (o mundo exterior), culminando no Bem em si, princípio último de toda verdade e realid ade. Como ele afirma:
...quando vista, deve nos levar à conclusão de que esta é de fato a causa de todas as coisas, de tudo que tem de correto e belo, dando à luz no mundo visível para a luz, e mestra da luz, a si mesma no mundo inteligível fonte autêntica da verdade (aletheia) e razão (nõus), e qualquer um que agir sabiamente em particular ou público deve tomar vista disso" (República, 517c).
Esse nõus, a razão universal, é algo que Plotino elencou à sua filosofia como a esfera da inteligibilidade; um mundo de formas eternas e essenciais a cada objeto que compõem nosso mundo desordenado e transitório.
Platão é um filósofo só aparentemente fácil de decifrar; como eu disse, essa alegoria faz parte de um longo diálogo que Sócrates está tendo com Gláucon. Ele solta essa história complexa e, no fundo, fascinante (muito bem escrita) para justificar como guardiões de sua cidade ideal não se sentirão tentados a se beneficiar de sua hierarquia superior: diferente de políticos, ou administradores públicos que estão sempre tentados a abusar do poder porque o poder é, por si só, tentador, os guardiões ideais para Sócrates são filósofos justamente por isso: para as mentes filosóficas, basta estar envolvido numa missão de conhecimento do mundo. O filósofo que estiver no caminho certo vai se satisfazer com sua busca em si; ele não precisa se enriquecer, porque não que não for inessencial o preenche. Sócrates afirma que os únicos verdadeiros governantes devem ser aqueles que escaparam da caverna (ou seja, os filósofos), porque:
- Eles conhecem a verdadeira realidade (o mundo das Ideias, especialmente o Bem em si) e agirão de acordo com suas convicções.
- Consequentemente, eles aceitam governar pautados em um dever moral (520a-d).
- Somente eles podem organizar a cidade de acordo com a justiça real, não com base em sombras (opiniões falsas ou interesses particulares).
Essa é uma dimensão do mito da caverna que foge a muitos leitores; Platão, mais uma vez, é um escritor difícil porque tudo que ele está escrevendo está em um contexto de uma conversa. Platão nunca escreveu um tratado, mas só diálogos entre sua personagem Sócrates e outras pessoas que transitam por Atenas, algumas figuras existentes mesmo, outras fictícias. E você, leitor, é forçado e usar sua cabeça e conhecimento prévio para entender a conversa em contexto, e entender as implicações desse contexto. Se quiser pegar o bonde andando e dizer: "a intenção da alegoria da caverna é falar da superioridade moral dos filósofos", você corre um risco imenso de falar asneira. Ou de generalizar Platão.
Pois, um dos culpados por esse uso generalizante de Platão foi Plotino. Ele retomou essa alegoria da caverna nas Enéadas, mas a transformou numa jornada metafísica e mística. Para ele, a caverna não é apenas um símbolo da ignorância, mas é o próprio mundo da matéria que aprisiona a alma em sua queda (Enéada IV, 8.1). A libertação não é apenas intelectual, como em Platão, mas uma purificação (katharsis) espiritual, em que a alma se desprende do corpo e se volta para o interior:
É preciso fugir daqui abaixo, separar a alma do corpo, habituar-se a ver a beleza não nas coisas materiais, mas na luz primeira, no sol de onde provém toda claridade. (Enéada I, 6.8).
Isso soa frase de guru? Soa. É uma das formas como filosofia platônica passa a resvalar em misticismo uma vez interpretada por Plotino. E Plotino jurava ser um intérprete fiel de Platão — a gente sabe que ele conhecia bem a alegoria da caverna porque ele faz menções indiretas a ela em diversos momentos. Vou citar um trecho só para fins de exemplo:
"As almas descendem como se fossem colocadas em uma caverna, e aquelas que escapam retornam ao mundo superior após se libertarem de suas correntes". Enéada IV, 8.1
A referência é inequívoca. Se separar do corpo então significaria ir atrás da própria morte? — essa parece uma implicação perturbadora de Plotino, mas condizente com ideias da mortificação da carne de teólogos cristãos medievais que o leram: a carne, o corpo e seus instintos, são formas tão inferiores que distante do Divino (do bem, do moral, etc), que servem somente de impeditivo para realizarmos o máximo de nossa potencialidade.
"Ordenei à minha alma que se impusesse sobre o corpo, e ao corpo que se submetesse à alma." (Santo Agostinho. Confissões, Livro VIII).
"A mente só alcança Deus quando se liberta das paixões corporais." A Filocalia (séc. IV, tradição ortodoxa)
Casos extremos de ascetismo já eram parte da tradição cristã primitiva e do gnosticismo, e isso antes de Plotino, é claro; mas o cristianismo medieval encontrou uma base filosófica rigorosa no platonismo tardio. Na Bíblia cristã os atos de mortificação são abruptos, mal explicados e até mesmo polêmicos para exegetas atuais. Um exemplo é de 1 Coríntios 9:27: " esmurro o meu corpo e o reduzo à escravidão, para que, depois de pregar a outros, eu mesmo não venha a ser reprovado." Segundo exemplo: Colossenses 3:5: "Mortificai, pois, os vossos membros que estão sobre a terra: a prostituição, a impureza, a paixão, a concupiscência e a avareza, que é idolatria." Esse último texto, atribuído ao apóstolo Paulo, foi amplamente citado por autores como Santo Agostinho e São Jerônimo para justificar práticas ascéticas. Mas eles usaram a teologia plotiniana como pano de fundo.
Na teologia medieval, a potencialidade máxima humana é estar em plena comunhão com o Divino. Isso só acontece plenamente quando você, como cristão salvo, estiver morto e redimido de seus pecados — mas há um atalho. Uma forma de antecipar essa experiência mística num mundo sem esperanças de sofrimento e divisão. Fiéis podem recorrer a esse atalho, sacerdotes meio que são obrigados a fazê-lo. A tradição patrística proliferou práticas que simbolizam essa separar do corpo/do mundo físico, e que fazem parte dos ritos cristãos até hoje: o autoflagelo, o jejum, o celibato dos padres e freiras, a pobreza dos monges — são todas instituições derivadas dessa ideia platônica, e Plotino, eu argumento, é a ponte entre uma cultura e a outra; a cultura do paganismo ateniense (que pensava na negação do mundo físico como parte de um exercício filosófico de busca intelectual das essenciais das coisas) e a cultura da teologia cristã primitiva (que estava levando o dualismo de nossas mentes às últimas consequências).
Plotino, também, descreve a separação da mente humana de seu corpo como um êxtase, no qual a consciência individual se dissolve no Uno, o princípio transcendente além de todo ser (Enéada VI, 9.9). Temos aqui uma versão radicalizada do mito de Platão, transformada numa jornada espiritual de autotranscendência, onde a consciência humana atinge seu ápice ao se reconhecer como parte do divino. Plotino aparentemente não acreditava na mortificação da carne como um caminho de ascensão de volta às nossas origens, porque essas origens não têm nada a ver com fé e separação — elas têm a ver com conhecimento e compreensão de uma harmonia unificadora das coisas. Há episódios de uma biografia que Porfírio escreveu sobre seu mestre que sugerem que Plotino dissuadiu esse discípulo de se suicidar. Tudo indica que ele era contra a mortificação do corpo tamanho era seu desprezo pela dimensão corpórea. Melhor seria mantermos nossos corpos funcionando bem, sem perturbações, para nos esquecermos deles; isso permite não sermos distraídos de nossa verdade missão intelectual: e eu vou falar um pouco do princípio de individuação que Plotino trouxe para a metafísica, e todo mundo que estudou Leibniz, Kant e Schopenhauer conhece bem: o principium individuationis é o termo técnico usado pela filosofia.
Eu começo com um trecho de Enéada IV, 3 (27) — Sobre a Alma (Problemas sobre a Alma I):
"Assim como num exército, quando o general se retira, os soldados se dispersam, porque não há mais uma força unificadora que os mantenha juntos, assim também, quando a alma abandona o corpo, este se decompõe, pois a alma era o princípio que o mantinha unido."
A comparação que ele está fazendo aqui é entre três tipos de unidade — ele é fascinado por essas categorias matemáticas, e vai sempre se valer delas para explicar metafísica. Vamos começar com o tipo de unidade que é um batalhão de exército: são uma porção de pessoas que se identificam como pertencentes a um batalhão, movidas por um objetivo de guerra comum, com um inimigo bem definido tal qual aquilo que não é seu batalhão, assim como com seus camaradas bem definidos (membros do próprio batalhão, ou de outros batalhões irmanados). Qual é o limite desse tipo de unidade. O fim da guerra faz o batalhão se dissolver. A destruição eventual desse batalhão numa campanha desastrosa, mesma coisa, faz todo mundo morrer e essa unidade que unia pessoas de carne e osso se dissolver. Uma ordem do general é capaz de fazer um batalhão se dissolver e voltar para casa. Metafisicamente, essa é uma unidade, mas pode deixar de vir a ser por inúmeros fatores.
Agora compare com o corpo humano. Você tem dois olhos, um nariz, duas orelhas. Cada um desses elementos tem sua unidade, mas aquilo que você reconhece como seu rosto, seu corpo, forma uma unidade que depende dessas coisas estarem juntas, funcionando do jeito que normalmente funcionam, e seus órgãos estarem desempenhando suas funções. O corpo humana, é claro, é uma máquina biológica que tem fim: seus órgãos deixam de funcionar e ele logo começa a ser fisicamente decomposto, deixando de ser uma unidade para se dissolver no terreno onde faz seu féretro. A unidade primordial do corpo, portanto, é a alma (ou vida) que o mantém animado, diz Plotino. Ele usa dois termos para alma, só para complicar nossas vidas.
O primeiro é Ψυχή (Psychḗ) (princípio vital que anima o corpo). Aqui, a ψυχή é uma hipóstase (camada da realidade substancial) derivada do Intelecto (Nõus), mas ligada ao mundo sensível. Ela é a ponte entre o Nõus ou mundo das ideias e o mundo físico. A ponte que mantém nossos corpos vivos, como se só enquanto estiver sendo provida de uma alma que bebe da realidade supraterrena a matéria não degrada automaticamente. Essa é uma imagem insana, mas atrativa. Seu corpo só não cai no chão e apodrece, e só tem alguma dignidade ontológica neste momento (funcionando como um elemento dotado de estatuto moral entre outros seres animados, atuando moralmente frente a outros seres animados, e isso porque existe uma alma recheando ele). Essa alma não existe no mundo físico; ela é o vínculo energético que o conecta à esfera invisível da Intelectualidade cósmica (o Nõus). Algumas citações nas Enéadas, para entendermos como este é um tema contraintuitivo:
A matéria é o último grau da realidade [ou seja, o mais inferior], onde a forma se fragmenta. (Enéada II, 4.5).
A forma, aqui, é a forma inteligível, saída do mundo das ideias. É o εἶδος de Platão.
Cada alma é uma parte da Alma universal, mas torna-se individual ao se voltar para um corpo. (Enéada IV, 3.5).
Esse tornar-se individual é uma QUEDA, dirá Plotino, e valendo-se de um linguajar bem próximo do linguajar bíblico. A QUEDA não é dos anjos; todos somos uma espécie de anjos caídos da Graça Divina, com devidas adaptações em um universo não-cristão: isso só significa que temos um acesso incompleto, que precisa ser restabelecido, à fonte original de saber e harmonia com o cosmos. Estamos cindidos da totalidade e do mundo das ideias, mas isso pode ser remediado. Via filosofia. Via uma atitude filosófica perante o mundo que entenda uma verdade fundamental: a matéria é não-ser (isto é, ela é a causa e resultado de uma fragmentação formativa do mundo físico).
Isso é completamente contraintuitivo, mas eu avisei que a filosofia de Plotino é assim. Às vezes ele traduzirá alma por Λόγος, para se referir à estrutura racional que a alma de cada um de nós imprime no mundo (ver Enéada III, 2).
ἡ ψυχὴ [...] οὐχ ἥπτεται τοῦ σώματος (Enéada IV, 3.22)
"A alma não se une ao corpo de modo material."
A alma não se une ao corpo de modo material. Assim, a individuação é uma "degradação" da unidade original, não uma perfeição. Tornar-se quem você é, com uma identidade, um senso de história pessoal, é uma forma de degradação do seu verdadeiro Eu. Pense em fenômenos limítrofes de nossas consciências — uma pessoa entrando em um coma e vivendo uma vida 100% mental, ou estados de embriaguez ou dissociação em que a vida da mente conta mais do que a vida dos sentidos físicos. A mente humana tem uma espécie de autonomia misteriosa que, para um filósofo antigo como Plotino, apontava para origens extracorpóreas. E isso o fez concluir que a alma humana tem que ser imortal.
E mais: existe uma implicação existencial interessante em todo esse papo do princípio da individuação, que me soa um tanto moderno. Enquanto você não reconhecer sua realidade última como aquela que está ligada à eternidade e ao Nõus, você está condenado a viver aprisionado no seu corpo, perder noites de sono por ansiedade em relação ao seu trabalho. Ou sofrer de amor. Ficar remoendo a resposta atravessada que seu amigo te deu. Se preocupar com as contas do veterinário no final do mês. Nossos problemas nos aprisionam ao que é inessencial — à temporalidade, às coisas triviais que, no fundo, a gente sabe ser triviais. Mas não temos poder sobre essas afecções. Todos esses problemas têm um grau de realidade evidente: eles fazem nosso sangue ferver, nossos corações baterem mais forte, nossa gastrite piorar. Assim, não dá para fechar os olhos e negá-las sonsamente: "isso não está rolando". O problema está lá. Ele é real, no sentido habitual da palavra.
Plotino não é um pensador vulgar do tipo quando ele está propondo níveis de realidade. Essas coisas são reais, o mundo físico é real, mas nem por isso são essenciais. Ou fixas. Tudo o que é temporal, para sua metafísica, é inferior; tudo o que é eterno é superior. Porque o eterno está ligado à definição por excelência das coisas; o temporal, a só um momento de sua verdade. E as almas, a sua, a minha, são eternas, embora só consistam em uma parte, uma instanciação do que Plotino chama de Alma do Mundo.
Para afixar alguns pontos dessa coisa toda do princípio de individuação como uma degradação, vou deixar um trecho extenso das Enéadas como desfecho do episódio. Ele trata da imortalidade da alma humana.
Enéadas IV, 7.10-12
§4.7.10
A alma é aparentada à 'natureza mais divina e eterna', como demonstramos ao provar que ela não é um corpo. Além disso, não tem forma, cor ou tangibilidade. Isso também pode ser demonstrado pelas seguintes considerações:
Como concordamos que todo o mundo divino e verdadeiramente real é dotado de 'uma vida de bondade e inteligência', devemos considerar, a partir de nossa própria alma, qual seria sua natureza. Para tal, focaremos em uma alma que, no corpo, não adotou apetites ou paixões irracionais, nem se tornou receptáculo de outras emoções, mas que se purificou delas e, tanto quanto possível, não tem nada em comum com o corpo. A postulação de tal alma deixará claro que os vícios são acréscimos à alma e vêm de fora, enquanto, quando purificada, nela residem as melhores coisas, 'a sabedoria e o todo da virtude', que são seus devidos habitantes.
Se assim é a alma, quando se eleva para estar com si mesma, como poderia ela não pertencer àquela natureza que declaramos ser a do mundo divino e eterno? Pois a sabedoria e a verdadeira virtude, sendo divinas, não surgiriam em um receptáculo mortal e inferior; antes, é necessário que tal coisa seja ela mesma divina, pois participa da divindade por parentesco ou identidade de ser.
Por isso, qualquer um de nós que seja assim seria pouco diferente dos habitantes do mundo superior em relação à sua própria alma, sendo inferior apenas quanto à parte que está no corpo. Se todo ser humano fosse assim, ou mesmo se uma multidão substancial fosse dotada de tais almas, ninguém seria tão cético a ponto de não se convencer de que a parte sua que consiste em alma é inteiramente imortal. No entanto, ao ver a alma na maioria das pessoas corrompida de várias maneiras, não a consideram divina ou imortal. Mas há de se julgar a natureza de cada coisa olhando para seu estado purificado, pois o estado que vem de exterior sempre obstrui o conhecimento daquilo a que se acrescenta.
Examine-a subtraindo esse elemento externo, ou melhor, subtraia-se a si mesmo e então olhe, e você crerá que é imortal ao contemplar-se no nível inteligível, tendo adentrado um mundo puro. Isso porque verá um intelecto que não percebe nada sensível, nem qualquer coisa mortal aqui, mas que apreende, com seu aspecto eterno, a realidade eterna —- todos os conteúdos do mundo inteligível, um mundo ele mesmo inteligível e banhado de luz, iluminado pela verdade que irradia do Bem. Assim, frequentemente lhe ocorrerá que é bem dito:
'Salve, sou para ti como um deus imortal!' —- ao ascender ao divino e focar sua atenção na identidade que tem com ele.
Se essa purificação o levar ao conhecimento das coisas melhores, os ramos do entendimento científico se revelarão dentro dele — aqueles que são verdadeiramente ramos do entendimento. Pois não é fugindo de si mesma que a alma 'contempla a Autocontrole e a Justiça', mas sozinha, na medida em que se apreende e recorda o que foi outrora, a contemplar a estátuas erguidas em seu interior, as quais ela limpa da ferrugem do tempo. É como se o ouro se investisse de alma e, ao remover o elemento terreno que o permeava —- antes ele era ignorante de si mesmo, incapaz de se ver como ouro —-, [é como se] visse a si mesmo e se maravilhasse com sua natureza, percebendo que não precisava de beleza importada, pois ele mesmo era supremo, desde que deixado em seu estado puro.
§4.7.11
Quem, em sã consciência, negaria que tal coisa é imortal? Ela é dotada de vida por si mesma, que não pode perder. Como a alma poderia ser destruída, se a vida não lhe é acrescentada de fora, nem a possui como o calor está presente no fogo? Não digo que o calor seja introduzido no fogo, mas mesmo que não seja, ele está na matéria subjacente ao fogo —- e é por isso que o fogo se extingue.
A alma, porém, não tem vida assim, como matéria subjacente, mas é a vida nela que a torna alma. Pois ou a vida é uma substância dotada de vida por si mesma —- e essa é a alma, que todos concordam ser imortal —-, ou terão de analisá-la como um composto até chegar a algo imortal que se move por si mesmo, ao qual 'não é lícito receber a porção da morte'. Se disserem que a vida é um afeto introduzido na matéria, serão forçados a admitir que aquilo que introduz esse afeto é imortal, incapaz de receber o oposto do que transmite. Mas, na verdade, só há uma natureza que vive na atualidade.
§4.7.12
Além disso, se afirmarem que toda alma é destrutível, então todas as coisas já teriam perecido há muito. Se, por outro lado, uma classe de alma é perecível e outra não (como a alma do universo, postulada como imortal, mas não a nossa), terão de explicar por quê; pois ambas são princípios do movimento, vivem por si mesmas, conhecem as mesmas coisas pelos mesmos meios, refletem sobre o que está no céu e o que o transcende, buscam tudo o que tem substancialidade e ascendem ao primeiro princípio. Esse apreender 'o que cada coisa é', que deriva de seus próprios recursos pela contemplação do que está nela (via reminiscência), concede-lhe uma existência anterior ao corpo e, como usa tipos eternos de entendimento, permite que seja eterna.
Tudo o que é dissolúvel, sendo composto para existir, está naturalmente predisposto à dissolução. Mas a alma é una e de natureza simples, cujo ato é viver; assim, será indestrutível.
Dirão que, por estar dividida em partes, ela pereceria. Mas a alma não é uma massa física, como já demonstrado. Então, pereceria por mudança? A mudança destrutiva elimina a forma, mas deixa a matéria intacta —- algo que só afeta compostos. Se a alma não é suscetível a nenhum desses meios, segue-se que é indestrutível.