O que é idealismo filosófico?

Uma introdução às origens e desenvolvimento do pensamento idealista

Escrito por F.V.Silva em 09/09/2025

Os últimos textos trouxeram tratamentos mais densos da filosofia platônica, e agora vou falar de como ela foi transformada uma vez que Platão faleceu em 348 AEC. Dizer o que eu vou dizer agora é um clichê imenso, mas lá vamos nós: "a caracterização geral mais segura acerca da tradição filosófica europeia é que ela consiste em uma série de notas de rodapé para Platão" (Whitehead, Alfred North. Process and Reality. New York: The Free Press, 1978, p. 39.): essa é a citação de Alfred Whitehead que você vai achar em uma porção de textos escolares para explicar a influência de Platão sobre o mundo. A ideia é que Platão foi tão original que o restante da tradição filosófica do Ocidente não conseguiu se formar sem partir do leque imenso de temas e problemáticas que ele abriu, em algum de seus diálogos; seja para defendê-lo, corrigi-lo ou criticá-lo, todo mundo que veio depois tem o pensamento do homem como ponto de partida. Sobretudo a problematização da profunda falta de autoconhecimento que assola as pessoas. O fato de nascermos e crescermos sem as ferramentas para conhecer nossas próprias essências, impulsos e objetivos cria uma espécie de ideia de que o ser humano é uma entidade que nasce quebrada – esse é um modelo antropológico tipicamente platônico. Platão não inventou o fato que seres humanos são animais confusos e contraditórios, mas criou uma explicação elegante do porquê isso acontece, e esse foi o papo que discutimos extensamente em tratamentos dos diálogos República, livro I e Filebo, sobretudo.

O dito de Whitehead com que abri este episódio – da filosofia ocidental como uma "série de notas de rodapé para Platão" – pode criar 2 impressões equivocadas que não posso deixar passar reto: 1º, notas de rodapé de qual Platão? O próprio Platão foi interpretado de formas completamente diferentes; os próprios platonistas do século II AEC escreveram suas 'notas de rodapé', vamos dizer, para um pensador cético, completamente diferente do mentor espiritual dogmático da teurgia neoplatônica de 400 anos depois.

Esse vai ser o tema principal do próximo episódio – lá vamos discutir, de um ponto de vista historiográfico, a curiosa evolução de imagens de um dos pais da filosofia ocidental até chegarmos no Império Romano. Antes disso, deixem-me acentuar um erro a que muita gente recorre com esse papo da história da filosofia como notas de rodapé: a impressão de que, conforme o tempo passa, a filosofia se torna mais requintada. Que o mero acúmulo de novos livros, novas correntes, melhores técnicas de filologia para preservar as obras originais dos grandes clássicos cria um mundo mais filosoficamente consciente do que era antigamente. Essa é a ideia que nós, no século 21, temos o livro da filosofia mais carregado de notas de rodapé do que um pobre diabo de alguns séculos atrás.

O mais correto é dizer que as notas de rodapé para Platão são como notas de rodapé numa tese ruim, num livro porcamente editado: às vezes elas são esclarecedoras e realmente ampliam os significados do trecho que estão comentando; às vezes notas de rodapé desviam sua atenção; são comentários sem muita utilidade que perdem seu tempo. Minha sugestão é que se você está usando seu tempo precioso para estudar Platão e Plotino – seu vizinho estará consumindo teoria da conspiração de fascho, choradeira existencialista sobre o vazio do mundo, ou autoajuda boçal.

Não vamos recair na arrogância de quem descobre filosofia francesa contemporânea pela primeira vez: para quem tudo que é antigo e tradicional é inferior ao que é contemporâneo: que enxerga o esquema conceitual do Mundo das Ideias vs. o mundo físico como uma excentricidade de um pensador primitivo, que não tinha avanços científicos, que nós, os abençoados temos, e por isso deve ser lido como alguém que fez sua parte, lá na Atenas antiga, para que a humanidade chegasse até aqui… Sério, nós somos o ponto mais alto de inteligência, organização, autoconhecimento? Essa é arrogância histórica que pressupõe que, cada um de nós, absorver por completo o acúmulo de conhecimento publicado desde Platão, ou que magicamente esse caldo de sabedoria moderna se espalhou pelo senso comum de forma que pessoas do século 21 possam absorvê-lo por osmose.

Sai dessa. Deixa eu explicar porque o idealismo proposto nos diálogos platônicos de forma não-sistemática é um aperfeiçoamento conceitual não superado e formador de uma postura filosófica que temos até hoje. E seu ponto de partida é a constatação do defeito constitutivo do ser humano: sua incompetência paralisante para conhecer a si mesmo.

Só tendo falado isso posso entregar a resposta para "O que é idealismo?" - que dá título a este episódio.

IDEALISMO é um termo técnico da filosofia que não tem nada a ver com uma disposição otimista; uma pessoa idealista hoje, de fato, é aquele camarada que enxerga o mundo tingido das cores de seu otimismo, que acredita que os grandes ideais vingarão nesta centrífuga caótica de acidentes que é o mundo material etc. O termo idealismo mesmo não era usado na Grécia Antiga; ele só foi definido em um livro de 1747, de um cara que ninguém mais lê chamado Christian Wolff, (Vernünfftige Gedancken von Gott, der Welt und der Seele des Menschen, auch allen Dingen überhaupt, den Liebhabern der Wahrheit mitgetheilet. Halle: Carl Hermann Hemmerde, 1747)). Segundo ele, seus princípios são:

- algo de natureza mental é o fundamento último de toda a realidade (a mente, o espírito, o Nõus, a razão, a vontade etc), ou

- embora possamos admitir a existência de coisas independentes da mente humana, tudo o que somos capazes de saber sobre essa "realidade" está tão permeado por processos mentais tipicamente humanos, que todas as pretensões de conhecimento devem ser consideradas, em algum sentido, como uma forma de autoconhecimento.

Em outras palavras: A realidade bruta é filtrada a tal nível por nossas mentes individuais, com suas fraquezas, viéses e gostos, que resulta em conteúdos íntimos e intransferíveis para outras pessoas. O mundo que eu enxergo e o que você enxerga, fenomenologicamente falando, são coisas diferentes, com distintas cargas emotivas, semânticas, simbólicas; só o cenário do mundo coincide. Por isso as pessoas são tão únicas, por isso suas ações sobre o mundo colidem tanto e a todo momento.

A gente viu na teoria das formas de Platão e na hipótese da sobreposição de uma esfera noética acima da esfera das coisas materiais em Plotino: é um papo bem parecido. Átomos por si só são reais, e eles provam sua real idade porque quando você dá com a cara numa árvore, ela te machuca. Mas essa árvore não é reguladora da realidade; ela está lá pelos próximos 100 anos, então vai virar adubo ou lenha pra alguém; sua cara vai existir mais algumas décadas. O que é material é tão perecível que não pode carregar o que há de essencial em si.

Ou seja, essas coisas não têm a mesma substancialidade que ideias: coisas materiais perecem e se transformam a todo momento, mas ideias ficam e regulam a realidade (inclusive as leis físicas, químicas, biológicas etc são parte da esfera abstrata e podem ser formuladas conceitualmente em nossas mentes, como se houvesse uma equivalência natural entre o que é invisível e coordenador do mundo, e o que se passa na minha e sua mente).

E seguem-se alguns argumentos do que porque Platão, em pleno século IV AEC, estava insistindo nessa ideia de que o mundo renderizado, digamos, no teatro de nossas mentes é, de alguma forma, mais substancial que o mundo intocado pela mente humana.

Eu vou pedir uns minutos para formular alguns ARGUMENTOS EM PROL DO IDEALISMO EPISTEMOLÓGICO:

(1) Num primeiro momento, quero falar sobre pessoas invisíveis:

Em 2022 o IBGE estava começando a se mobilizar para um novo recenseamento da população brasileira – e jornalistas problematizaram o fato de que o número de moradores de rua tinha crescido muito em grandes centros urbanos no período pós-pandemia. Um jornalista pro G1 menciona: "os brasileiros que vivem em situação de rua tendem a permanecer invisíveis nas estatísticas oficiais do país pelos próximos dez anos, quando nova operação censitária deverá ser realizada no país." (https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/01/05/censo-2022-populacao-que-vive-nas-ruas-segue-invisivel-nas-estatisticas-oficiais-do-pais.ghtml)

Essa ideia de moradores de rua como "pessoas invisíveis" é algo que com certeza você já ouviu; eu ouvi recentemente uma mulher dizer que, se antes ela era centro das atenções no bar onde trabalhava, uma vez que chegou na meia-idade ela deixou de receber favores e as mesmas gorjetas que recebia, porque deixou de ser atrativa para homens que frequentam o lugar. Sua compreensão da boa vontade das pessoas em geral mudou bastante. O ônibus deixou de parar para ela quando ela chegava atrasada no ponto. As ligações de amigos começaram a rarear. Ela começou se sentir 'invisível' – foi como ela concluiu o relato – e essa palavra volta constantemente quando o assunto é a presença de certos tipos de pessoas no tipo de vida social que temos. Não vou nem entrar no assunto de como e porque, na dinâmica social, uns têm mais visibilidade que os outros, mas façamos um contraste entre duas teorias do conhecimento:

A teoria do conhecimento realista dirá que que todas essas pessoas têm a mesma substancialidade. São feitas de carne e osso, e até onde sei, seres humanos ainda não desenvolveram tecidos transluzentes. Ela é uma teoria do conhecimento que apaga todos os outros fatores que incidem sobre a cognição dessas pessoas. Como teoria do conhecimento, portanto, que não dá conta de explicar a cognição em suas várias nuances, ela é um desastre. Aqui a gente encontra o aperfeiçoamento platônico de que eu falei; ele não significa que todo mundo depois virou um idealista, mas que fazer filosofia a sério envolve a aplicação de rigor epistemológico muito maior: a fenomenologia do século 20 dá mostras claras de como essa ideia foi transformada em uma ciência complexa. (Já falamos dela)

Em suma, há diferentes níveis de perceber uma pessoa: de algumas pessoas você decora a rosto na hora, de outras pessoas você desvia, outras vai lembrar o nome só depois da quinta vez que a pessoa o mencionou. A maioria das pessoas você nem quer entender, e não fazem parte do cenário da sua vida; outras poucas fazem você perder o sono, porque são personagens centrais na narrativa que você conta sobre si mesmo.

William James tem um trecho exemplar em que está explicando a presença dos estados de espírito para a formação da realidade interna. Ele começa a descrever um casal. Sobre o homem que está apaixonado por dada mulher, ele pergunta – "quem a vê mais verdadeiramente como ela de fato é?". Esse encantamento do que a gente chama de paixão de um ser humano por outro não tem a qualidade de um sonho, como se fosse um delírio sobre a outra pessoa: ela tem o poder de conferir a realidade em nuances indisponíveis para as pessoas desatentas e indiferentes. Seres humanos têm a capacidade de dedicar plena atenção para as coisas, mas isso simplesmente não acontece a todo momento – como se nossas mentes fossem o espelho duro da realidade, que somos capazes de memorizar em sua plenitude simplesmente porque somos máquinas estúpidas de absorção do mundo. A realidade pode estar lá, mas NÓS ligados a ela em diferentes níveis.

A postura habitual de nossas mentes leva ao oposto do conhecimento - a sua é ignorância abissal e automatizada na qual a cognição humana funciona na maioria do tempo. A verdade não é colhida do mundo exterior às colheradas, ela é adicionada a esse mundo; nós somos seres que cavoucam a realidade dos recônditos obscuros de nossa individuação, trazemos seus detritos para essa toca úmida e claustrofóbica que chamamos de mente, e, com as unhas ainda sujas e gastas, organizamos seus fragmentos. Tentamos extrair sentido deles.

E é por isso um médico verá você como uma coleção de órgãos e problemas a resolver, e você não se chateia. Ele projeta sobre você uma visão técnica; você é uma máquina que precisa ser consertada, não um amante ou um ente querido.

Já a pessoa que te ama, ou odeia, enxerga você como uma parte essencial de seus planos, e é o mínimo que pode fazer para retribuir seu afeto. O tipo de visão que ela projeta sobre você é diferente da do médico.

Lidar com outras pessoas é algo que envolve uma modalidade de intimidade, e uma série de riscos por força da natureza de processo de conhecimento. Quando nós estamos tentando conhecer algo ou alguém, estão sempre projetando expectativas do que a gente vai encontrar: você começa um curso universitário, digamos, sem saber direito o que vai encontrar. Se soubesse, cê não teria feito matrícula, não iria perder 5 anos estudando a bagaça. Agora pensa no nível pessoal; você desenvolve um relacionamento como alguém, e isso significa que está depositando sua confiança no que aquela pessoa deve ser; cabe à pessoa corresponder a essa expectativa ou não. Todo ato de confiança é um tiro no escuro; mas só ela pode abrir caminho para uma compreensão mais completa. Ou você confia, ou não faz nada.

Ter a confiança traída é o preço para se estar vivo – isso vive acontecendo. A nível epistemológico e moral, as coisas vivem traindo o tempo e energia que investimos, e nem todo dia é um dia que vale a pena ser registrado. Mas que vida vazia é uma vida sem esse jogo de confiança. Você nem clicaria em um vídeo no YT se não achasse que ele possa minimamente reverter em algum ganho para você, em entretenimento, em conhecimento, que seja. Você não sairia de casa.

Essas últimas ideias que esbocei não são de Platão, são o conceito de ekstasis futura de Husserl, um fenomenólogo do século 20. (Zur Phänomenologie des inneren Zeitbewusstseins (1893-1917), ed. Edith Stein, 1928). A história da filosofia não chegaria a ela se se pautasse no realismo do senso comum, que afirma: o que eu vejo ao abrir os olhos e andar por aí é o que todo mundo vê. Não tem como ser diferente. Essa é uma corrupção da verdade de nossas percepções. Ele é uma simplificação de processos que, para funcionar, teria que chegar a conclusão absurdas, totalmente avessas à como nossas vidas funciona.

*

Segundo argumento em prol do idealismo: ele não vem de Platão, vem de Heidegger e da fenomenologia.

Seres humanos têm uma dignidade ontológica distinta: você descobre isso quando entra na presença de um cadáver pela primeira vez. É um lance aterrador, porque você sabe que uma pessoa já esteve lá um dia. Em breve ela se decomporá e virará uma mescla de fluidos e comida para vermes. O próprio ato de ser humano cria uma presença única, aurática, que é capaz de inspirar seu respeito por outro cidadão, ou medo porque pessoas são cruéis, ou pelo menos faz ativar sua máscara social. Você está na frente de outra pessoa, afinal, tenha modos. Essa aura já não existe nos mortos. Mas mesmo assim, tudo o que parte além dessa postura perante outras pessoas vivas se mescla a um complexo de emoções, preconceitos, expectativas que torna alguns menos visíveis que os outros.

Agora pensa como isso pode ser estendido por todo o resto de nossa cognição: quando pensamos em plantas, máquinas, minerais, celulares.

Tudo é filtrado por nossas mentes, nossos instintos, nossas atitudes adquiridas (até pelas possibilidade que a história abriu para a humanidade naquele momento de seu percurso) - de forma que o real é menos simples do que pressupõem o realismo filosófico.

"o idealista, antes de ser antirrealista, é na verdade… um realista frente a elementos mais comumente descartados da realidade." (Dunham, Jeremy; Iain Hamilton Grant; Sean Watson. Idealism: The History of a Philosophy. London: Acumen, 2011, p. 4)

Essas reflexões sobre cadáveres e dignidade ontológica do corpo humano, eu repito, é fruto de reflexões da filosofia do século 20, de Heidegger e outros. Tenho a impressão que Platão chegou ao cerne do mesmo problema quando problematizou o modo como reagimos à beleza das coisas em Fedro (370 AEC).

Sua inclinação para conclusões próprias do idealismo surgiram de considerações relativas ao status ontológico dos valores estéticos (a grande pergunta era: a beleza é um atributo grudado aos objetos? Ou vem de nossas mentes?) ou da incapacidade ou falta de vontade de pensar a constituição de fenômenos sociais e culturais, como a sociedade ou a religião, em termos de teoria física. Em suma: existem tantos motivos e razões para endossar o idealismo quantos existem os diferentes aspectos da realidade a serem conhecidos ou explicados.

Heidegger, de novo, não é exatamente um ser humano que eu leve a sério, mas tem um momento em que desenvolveu uma ontologia das diferentes formas de ser que pode nos interessar, e que apoia a tese de que há algo de irredutivelmente humano que tinge nossa percepção do mundo radicalmente. Isso está em A Origem da Obra de Arte, publicado pela primeira vez em 1950: o estatuto de uma cadeira, por exemplo, é definido por sua utilidade: o mano que constrói esse objeto o faz tendo alguns objetivos em mente: o objeto precisa sentar alguém confortavelmente, e terá suas medidas feitas para que isso seja possível. Ele vai ter um valor de mercado que será reconhecido, por convenção, por todo mundo que trabalhe com cadeiras, e o marceneiro vai trocar isso pelo dinheiro do seu salário.

Agora pense qual é o tipo de ser de uma obra de arte. O quadro Salvator Mundi de Leonardo da Vinci foi recentemente vendido por US$450.3 milhões, em 2017, o valor mais alto pago por uma obra do tipo. Nada nele custa tudo isso; por melhor que seja sua tinta, a qualidade da tela, os instrumentos usados pelo artista. A fama de Leonardo da Vinci é uma abstração puramente humana – seres humanos, por motivos diversos, atribuíram valor histórico, religioso, artística a Leonardo da Vinci a ponto de leiloarem um quadro que vendeu por 450 milhões de dólares. A tese realista não dá conta de explicar como as coisas funcionam porque essa camada extra de realidade, dos símbolos, conceitos e ideias que pairam sobre cada pequena prática que guia nossas vidas, formata uma realidade de quadro caros, pessoas invisíveis e casais apaixonados. Esses valores não habitam a materialidade das coisas. Eles são ideias.

Obras de arte são ainda mais intrigantes porque, uma vez que elas estão prontas, elas deixam de ser propriedade do artista. Podem ser propriedade intelectual do cara, mas isso é efeito de uma abstração jurídica: o público vai julgar essa obra e atribuir diferentes valores a ela. Na Renascença, quando Leonardo da Vinci expõe seu quadro, ele tinha valor religioso absoluto: ela um retrato divinamente inspirado de Jesus Cristo, um bem da iconografia religiosa cobiçado por grandes basílicas e catedrais. Hoje, colecionadores de arte o vêm como um marco da história da arte, ligado à fama de Da Vinci. A obra de arte, portanto, não é meramente um objeto com propriedades estéticas. Ele tem uma função ontológica única: ele instaura um mundo de referências de uma época remota para o nosso mundo (nos abre um quadro dos gostos e expectativas da Itália renascentistas para nós, hoje). E ele durará muito mais do que Leonardo Da Vinci durou; obras de arte são documentos da maestria humana sobre a material (a tinta e o quadro) através das épocas, da sua capacidade de gerar sentido a partir da materialidade tosca de um quadro em branco, de uma parede.

Um dia podemos falar de como o fenômeno da Beleza confundia os gregos antigos, nos focando em Fedro de Platão. Agora chega de Heidegger.

Terceiro argumento em prol do idealismo:

Em grego antigo, o termo para confiança é Πίστις -> esse termo em latino era fide -> dele vem os termos de línguas neolatinas fidelidade e : e confiança é um instrumento e uma postura de mundo que reflete uma decisão de aceitar que a intuição imediata daquilo que você é a criação. É a disposição instauradora do mundo real.

Mas quanto mais você sabe das coisas – estou falando de algo que você estuda por 10, 20 anos, e se empenha para conhecer –, mais entende quão difícil é entender essa coisa. Entende quais são as inúmeras lacunas para interpretá-la, os erros comuns de quem está tentando entendê-la. Ouvi isso de um musicista profissional (em música clássica, interpretar uma partitura, uma peça musical, principalmente quando ela foi composta antes de existir fonógrafos, é um salto interpretativo imenso. Ninguém sabe todos os detalhes de como ela deve ter soado na época em que foi concebida, e isso não importa. Música é uma arte interpretativa de notas sobre uma partitura. Quando você está incumbido de apresentar uma cantata de Bach na frente de um público, digamos, você vai até questionar se a física dos violinos tocados no século 18 era a mesma dos de hoje. Você não sabe como o som reverberava no lugar onde a peça foi tocada pela primeira vez na cidade de Halle. Você começa a questionar tudo.)

O mesmo vale para um texto literário. Um papel no teatro.

Em suma: Conhecer uma coisa a fundo, sobretudo no campo das artes e da criatividade, tem esse estranho efeito de tornar essa coisa simultaneamente mais clara e mais complexa: eu olho para um paredão de minérios na minha cidade, eu vejo uma coisa só: uma montoeira de pedras. De diferentes cores, mas é tudo pedra. Minha colega que é geóloga veria diferentes camadas de sedimentação, cada qual com sua história, a época em que foi depositada onde está, em sua teimosa rigidez mineral; ela deduziria diferentes composições químicas, diferentes estágios de degradação basáltica, a atuação de meteorização física ou química, aqui e ali. Nós enxergamos o mundo da mesma forma, sério mesmo? Eu sei que existe uma eventual complexidade ali porque não sou um completo idiota, mas ela ENTENDE essa complexidade. Para mim aquilo é uma unidade relativamente simples, para ela é um mundo de significados latentes. Meu cachorro seria pior: ele só enxergaria um lugar adequado para mijar e seguir seu caminho pelas ruas da cidade. A capacidade humana de transformar as coisas em conceito é, para os idealistas, uma criação proliferadora de mundos. Em vez de explicar o mundo e reduzi-lo a um núcleo seguro de significados contidos, ela o extrapola. O Sócrates platônico tinha uma intuição segura só disso na vida: quando mais ele sabia, mais ele sabia que nada sabia. Essa não é uma frase de efeito engraçadinha de um cara metido a besta, que gosta de confundir os outros. Não sejamos arrogantes, eu pedi isso no começo do episódio: talvez nessa frase, "só sei que nada sei", resida um paradoxo crucial sobre as faculdades de conhecimento do mundo.

E o mundo pode ser visto como algo simples: sem essa projeção noética de significados multiplicadores ele até existe - é assim o cenário inócuo por onde rastejam os insetos, parecido com cenários de videogame que não foram programados, aquela zona liminar em que tudo é descontinuado. Onde você não sabe quais portas vão se abrir, quais não vão, porque o mundo que tem significados para humanos não pode ser decifrado por você. O mundo por onde você transita, potencializado pela complexidade da sua mente, é infinitamente mais rico do que o mundo que as máquinas encaram e simulam uma compreensão – os antigos diziam que o ser humano tem uma fagulha do divino dentro de si por isso, porque nossas mentes são dispositivos criadores de mundo, de uma forma que a maldita Inteligência Artificial jamais será. Eu estou escrevendo isso de 2025, e existe essa discussão vazia sobre como IA vai demolir todo o mundo que nós humanos construímos - isso não vai acontecer porque quem programa IA é um monte de cientista da computação sem um pingo de compreensão filosófica de como a mente humana funciona. Eles retiraram sua compreensão da mente das ciências biológicas, e por isso reproduziram só nosso comportamento reptiliano, instintivo, repetido, desprovido de criatividade. Seres humanos de fato apresentam padrões de comportamento repetitivo – a gente vive falando clichês, repetindo piadas que ouvimos e achamos engraçadas, moldamos nossas personalidades a partir de gente que admiramos e tal. O que a conquista do idealismo filosófico trouxe para as ciências humanas, que exemplifiquei aqui no caso da fenomenologia, é o que esses caras deixaram de lado. Além de Husserl e Heidegger, Henri Bergson, na virada do séc. 19 para o 20, é um cara que vale a pena ler nesse sentido. Ele não estava combate ndo uma visão computadorizada da inteligência como nós, mas a psicofísica do século 19: uma leitura das ciências biológicas que podem ser reduzidas a instintos herdados e reações bioquímicas mensuráveis por equipamentos médicos. As conclusões a que ele chegou são: consciência não é puro conhecimento. Ela é completamente orientada à prática. Nós estamos boa parte do dia devaneando por aí, como quem dorme em pé, enquanto uma mente mais profunda trabalha remoendo e processando conteúdos a diferentes níveis de complexidade. Alguns subconscientes, outros mais salientes. Isso para não falar de como sonhos funcionam. Como a memória humana funciona – isso nos leva a um mistério tão profundo que fez Platão resgatar uma teoria de reencarnação da Grécia Arcaica, lá de Pitágoras: nossas almas teriam que reencarnar da esfera noética para o mundo material, caso contrário o fenômeno da memória não seria explicado. É fácil ridicularizar isso e imaginar um homem de ideias excêntricas, tateando no escuro num mundo sem ciência. Com este episódio eu espero ter mostrado porque não você precisa chegar a cada uma das pequenas conclusões de Platão para se beneficiar de seus avanços filosóficos, porque a sua contribuição é incontornável.

Referências bibliográficas

  • Silveira, Daniel. "Censo 2022: população que vive nas ruas segue invisível nas estatísticas oficiais do país". G1. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/01/05/censo-2022-populacao-que-vive-nas-ruas-segue-invisivel-nas-estatisticas-oficiais-do-pais.ghtml. Acesso em: 27 maio 2024.
  • Whitehead, Alfred North. Process and Reality. New York: The Free Press, 1978.
  • Wolff, Christian. Vernünfftige Gedancken von Gott, der Welt und der Seele des Menschen, auch allen Dingen überhaupt, den Liebhabern der Wahrheit mitgetheilet. Halle: Carl Hermann Hemmerde, 1747.
  • Husserl, Edmund. Zur Phänomenologie des inneren Zeitbewusstseins (1893-1917), ed. Edith Stein, 1928.
  • Dunham, Jeremy; Iain Hamilton Grant; Sean Watson. Idealism: The History of a Philosophy. London: Acumen, 2011.