RELIGIOSIDADE CÍVICA ROMANA: DEUSES, SACERDÓCIOS E VESTAIS

Um olhar sobre a religião pública, os rituais e o papel das Vestais no Império Romano


Escrito por F.V.Silva, 15/12/2025

"Roma estava infestada de deuses ‒ não somente a religião romana tem centenas deles, mas toda nação, inclusive a dos judeus, árabes, germânicos, espanhóis e bretões, importou a sua própria" (Matyszak, 2018, p. 96). Isso é o que diz Philip Matyszak em um livro sobre a vida cotidiana no Império Romano. Ouvintes assíduos deste podcast ouviram algo semelhante no episódio 2 da série: o dado que a Roma dos séculos I e II viveu uma espécie de shopping center das religiões; pessoas sem qualquer ligação com o mitraísmo persa, ou com o cristianismo de extração judaica, se deixava contagiar por suas ideias e, às vezes, trocavam de religião como quem troca de roupa. Existia modas religiosas para patrícios, para militares, para plebeus, e esse é o Império Romano cosmopolita e eclético que a gente conhece. Para isso ser possível no mundo antigo, a religião original daquelas paragens precisou ser muito mais tolerante que as demais ‒ hoje eu falo sobre essa religião, que sequer tinha um nome único e oficial como "Cristianismo" ou "Judaísmo". Essa ausência de um nome específico já revela um bocado sobre sua natureza.

Os romanos entendiam sua prática religiosa de várias formas descritivas, mas não como um "ismo" separado da vida cívica e política. Aqui estão os termos e conceitos mais próximos que usavam:

Mos Maiorum ("Costume dos Antepassados"): Este é o conceito mais abrangente. A religião era parte inseparável das tradições, leis e valores herdados. Seguir os ritos corretamente era seguir o mos maiorum.

Cultus Deorum ("Culto aos Deuses" ou "Cuidado com os Deuses"): Esta era a expressão mais comum para descrever a prática religiosa. O verbo colere significa cultivar, cuidar. A religião era vista como um contrato de cuidado recíproco entre a comunidade romana (populus Romanus) e os deuses (pax deorum = a paz/aliança com os deuses). O objetivo era manter essa aliança através de ritos precisos.

Ius Divinum ("Direito Divino"): O aspecto jurídico da religião. Era o conjunto de regras e procedimentos que regiam a relação com o divino, administrado pelos colégios sacerdotais (como os Pontífices). Era paralelo ao ius humanum (direito humano).

Essas três esferas servem de introdução, pelo menos, para a gente ter contato com como essa religião penetrava no dia a dia das pessoas. Havia espalhado pela cidade as larariae, pequenos santuários para o deus escolhido de um lar, onde eram geralmente queimados os restos de comida que caíam durante uma refeição. Que a criança da casa não quis comer. Dentro de cada lar, o paterfamilias (o cabeça da família, aqui sempre um homem) servia de sacerdote que administrava os ritos; era ele que geralmente escolhia a deidade que protegeria seu lar e sua família, e o cuidado com a manutenção do altar simbolizava o cuidado com a família. Não havia nada de muito místico, tampouco necessidade de orações, mantras, jejuns ou quaisquer rituais extensos. Acho que o altar em algumas casas católicas ou um altar budista em outras espelha bem o costume romano: quando você passa por ele, faz um gesto ritual, e continua vivendo sua vida.

Como profissão de fé é personalizada, e é problema de cada paterfamilias e seus rebentos, a tolerância religiosa foi uma consequência desse sistema. Judeus das províncias, por exemplo, conseguiram continuar a praticar sua religião herdada sem grandes problemas no Império Romano, contanto que rendessem louvores aos Césares quando a população fosse evocada para rituais públicos (e a gente já vai explicar a lógica desses rituais). Mas existia algumas classes sacerdotais em Roma, desde o início da cidade ‒ a lenda diz que um sacerdócio romano começou lá no século 8 AEC. Para gente ter ideia de tempo, isso foi quando Homero estava compondo a Odisseia +-, lá na Grécia, e a cultura romana e grega ainda não tinha tido qualquer contato. Dali a 300 anos nasceria o Buda na Índia, dali a 500 anos nasceria Sócrates. A religião romana original, portanto, é de uma antiguidade imensa, e desconhecia os deuses gregos que mais tarde ela absorveria. E aqui entra algo muito interessante sobre Roma: Roma era uma cidade-Estado de guerreiros, e a lógica da sua prosperidade foi expandir seus domínios através de guerras de conquista. Você quer fazer parte da confederação romana? Ajoelhe-se e pague tributos, você vira um de nós. Não quer? A gente incendeia sua cidade e escraviza seus filhos e esposas. E essa prática nada sutil de imperialismo se aplicava para os deuses. Temos relatos de uma prática ritual da evocatio antes de qualquer guerra ‒ durante essa evocação, um sacerdote romano se punha na frente dos muros da cidade inimiga e convidava, aos berros, os deuses dessa cidade para abandonar seus adoradores e gozar de maiores amenidades nos santuários de Roma. Ele prometia uma casa, digamos, junto aos deuses romanos, em troca da proteção desse deus. Se os romanos vencessem essa batalha, eles passariam a adorar o deus local da outra cidade e a dedicar santuários para ele.

E com isso a gente entende duas coisas centrais sobre religiosidade cívica romana: esta é uma religião da cidade e sua cultura expansionista, que entende os deuses de forma quase secular, como produtos culturais que diferentes povos terão invariavelmente, sem qualquer reflexão sobre um princípio único do universo, ou um Deus que rege o panteão e pode ser eleito como o Deus verdadeiro, ou Deus único do monoteísmo. Segundo fator: quando a gente chegar na Roma Imperial, no primeiro século da Era Comum, a gente entende porque deuses gregos, persas, árabes, (e o deus judeu) estavam sendo adorados na cidade. Esses povos todos tinha sido conquistados. Para um romano, o deus da Torá revogou a proteção de seu povo original, os hebreus, no momento em que permitiu as falanges romanas destroçassem a guarda de Jerusalém no ano 63 AEC. O cristianismo foi uma exceção das exceções nessa dinâmica de importações culturais porque seu messias era um cidadão romano das províncias; ele representava uma universalidade que não era definida por etnia (como foi o caso dos judeus, dos gregos), e... a gente já chega lá. O Cristianismo e o culto a Baco acabaram sendo as únicas profissões de fé que entraram em conflito com esse clima de semitolerância religiosa da religião cívica dos romanos. Para resumir: "os romanos toleraram o que não lhes parecia perigoso e eram intolerantes quando algo lhes parecia perigoso." (Beltrão, 2006, p. 151, ver também p. 157)

Sacerdócio e Poder: O Pontifex e o Calendário

Voltemo-nos às classes sacerdotais. Há uma narrativa lendária do segundo rei da Roma arcaica que nos interessa aqui, e vai propor o surgimento da figura do Pontifex Maximus (o sumo sacerdote dos costumes romanos) e a classe das virgens vestais logo no início da cidade. Estou tirando os seguintes trechos das Vidas Paralelas de Plutarco, o capítulo sobre o rei Numa Pompílio: diz a história que o primeiro rei de Roma era um camarada irascível, obcecado por guerra e violência. Esse foi Rômulo, um dos dois meninos que mamaram na loba segundo a lenda, o fundador de Roma que matou o próprio irmão em sua sede por poder. Nessa altura, os romanos já tinham conquistados os sabinos, e uma vez que Rômulo chegou ao fim de sua carreira política, os próprios romanos chegaram à conclusão: é melhor colocar um sabino, um cara tranquilo e menos ambicioso chamado Numa, como nosso rei; outro romano como Rômulo vai nos levar à destruição. E diz a lenda que esse Numa realmente foi um dos poucos governantes de Roma que não se meteu em guerras, por todo seu longo governo, permitindo uma estabilidade necessária para a cidade naquele momento. Numa executou mudanças estruturais no dia a dia romano também: uma delas foi a inauguração de um novo calendário de 12 meses (que temos até hoje), e introdução de uma nova forma de religião, visando uma relação estável entre deuses e humanidade (a pax deorum da qual já falamos). Prosperidade e manutenção devida dos rituais andam de mãos dadas aqui.

A coisa do calendário deve ser vista numa perspectiva simbólica, mas explica detalhes intrigantes sobre nosso calendário: cê já se perguntou porque o mês de setembro é o mês 9 (e não sete), e outubro é o mês 10, e não oito? A explicação reside aqui, no reino de Numa.

Diz Plutarco que o ano original dos romanos tinha apenas 10 meses (304 dias), começando em Martius (Março) em homenagem ao deus da guerra, Marte. Tratava-se de um "ano de campanha de guerra", que ignorava justamente o período do inverno, que era inviável para a marcha de tropas. Nesse momento os meses eram nomeados por divindades (Maio/Maia, Junho/Juno) ou por números (Quintilis a December, o "décimo").

Daí veio Numa Pompílio, segundo rei de Roma, na condição de um reformador do espírito romano: num ato de civilização daquele povo sedento por sangue, ele adicionou dois meses ao ano romano, totalizando os 12 que temos hoje, e renovando sua simbologia:

Ianuarius seria dedicado a Jano (deus de duas cabeças, uma olhando para o passado e outra para o futuro; ele simboliza recomeços e previdência), e mês foi posto antes de março. Februarius foi inaugurado como um mês das purificações (februa), lotado de rituais aos mortos e à fertilidade (como a Lupercália), encerrando o ciclo de abertura do ano. Uma vez purificada, a cidade podia continuar suas campanhas militares. E foi assim que Numa transformou o tempo de instrumento bélico (onde 1 ano = 1 campanha de dominação) em uma espécie de espaço sagrado, integrando ritos agrícolas e de purificação, mais a reflexão de janeiro sobre os rumos futuros da cidade. Séculos depois, o calendário foi politizado: Quintilis virou Iulius (julho) em louvor a Júlio César, e Sextilis virou Augustus (agosto), em homenagem ao fundador do Império Romano, e aqui está pronto o calendário ocidental e de boa parte dos países colonizados pela Europa.

Esse é um detalhe etiológico (uma história das origens das coisas que fazem parte de nossas vidas), e os helenistas como Plutarco eram muito bons em compor essas narrativas. E a gente retira daqui a justificativa para a religião cívica como força que deve controlar o caráter irascível dos romanos: Numa era visto como um discípulo de Pitágoras e reformador da religiosidade pautada no misticismo grego. Instituição dos pontífices é uma das contribuições de Numa, e essa é a origem tanto do sacerdócio organizado dos romanos quanto da ideia posterior do papado, para os católicos: é uma ideia profundamente romana (ver Plutarch, 1953, p. 54) "O ofício de Pontífice Máximo, ou sumo sacerdote, era declarar e interpretar a lei divina, ou melhor, presidir os ritos sagrados; ele não apenas prescrevia regras para a cerimônia pública, mas regulamentava os sacrifícios de pessoas privadas […]"

Os romanos precisavam de uma classe sacerdotal em tempo integral porque os imperadores deviam ser sancionados pela esfera do divino. Diferentemente dos reis europeus (que criam ter sido colocados no seu posto por Deus), os imperadores romanos só viravam divindades depois de mortos ‒ essa era a garantia para que o imperadorzinho, desde a infância, tivesse bem claro em sua mente que devia ser um bom imperador para merecer esse posto de divindade. Os sacerdotes eram os únicos capazes de controlar a megalomania de seus líderes ‒ e Roma sofreu, como poucas cidades, com reis, senadores e imperadores megalomaníacos, de Júlio César a Nero, Calígula, Tibério, Cômodo... é difícil listar todos. Um deles declarou uma guerra contra o mar. O outro incendiou uma parte imensa da cidade para colocar a culpa nos seus inimigos. Então, que fique claro: a principal função dos sacerdotes romanos é política; mantém os imperadores nos trilhos. A outra é manter a população nos trilhos, e a promoção de festivais anuais doa muito do fascínio que Roma exerce sobre nós. Carnaval, Natal, Dia dos Namorados ‒ em dois mil anos de história, a gente inovou muito pouco. A ideia para todos esses festivais cívicos vem do Império Romano, e o mais fascinante dele acontecia em 4 de abril. Essa é a festa da Floralia (ver descrição em Matyszak, 2018, p. 104).

4 de abril abria com banquetes em louvor à Magna Mater (a grande mãe, representação da maternidade derivada de cultos asiáticos). Então havia a Parilia, quando uma mistura especial de ervas e farinha era preparada por um grupo de sacerdotisas chamadas vestais e era queimada em pequenas fogueiras por toda a cidade. Em seguida, a população se aspergia com a água sagrada das vestais (essa é a origem da água benta católica, aliás) e partiam para uma orgia gastronômica em que comiam até não poder mais. Romanos sabiam festejar de verdade; a Florália acontecia de 28 de abril a 3 de maio, e ressaca não era desculpa para parar. Tratava-se de uma semana inteira de jogos, teatro e brincadeiras dedicados à floração da natureza após os meses de inverno e fertilidade. Aqui todo o pudor sexual que um cidadão e cidadã comum tinham que manter durante o ano estava suspenso: não conseguir um ou vários parceiros e parceiras sexuais durante a Floralia romana era um indício de que você era realmente ruim de papo.

As Vestais: Poder, Sacrifício e Simbolismo

Havia um grupo que não podia participar mesmo desse clima de liberalidade sexual: as vestais. Isso porque as vestais eram virgens ‒ eram a personificação da virgindade, de uma vida dedicada aos deuses e à manutenção do ritual que garantiria o grande acordo entre os deuses e a população de Roma. E as vestais constituem um dos grupos mais fascinantes na história romana, em partes porque a gente não sabe quase nada sobre seus preceitos, seus ritos internos, seus ensinamentos. Hoje a gente chamaria as vestais de um culto secreto, que não podia vazar para fora, e nunca as palavras escritas de uma vestal chegou até nós, para tornar a coisa mais difusa.

A princípio, ninguém, sob pena de morte, podia tocar em uma vestal. Inicialmente elas eram todas filhas das altas classes e famílias tradicionais de Roma, e já eram iniciadas aos dez anos de idade. ("Em Roma, sacerdócio é uma nomeação política, […], vestais são, em sua maioria, filhas que sobraram de famílias da alta aristocracia"; Matyszak, 2017). Assim, seis pequenas vestais eram aceitas por geração para iniciar seu processo de doutrinação: elas recebiam uma educação secreta até os 20 anos de idade, quando começavam a sair pelas ruas para executar os rituais da cidade em diferentes festivais, às vezes auxiliando outros grupos de sacerdotes. E o código de conduta de uma vestal era estrito; eu cito Plutarco.

Se essas vestais cometerem alguma falta menor, são punidas apenas pelo sumo sacerdote, que açoita a transgressora, às vezes com as roupas nuas, em um lugar escuro, com uma cortina entre elas; mas aquela que quebrou seu voto [de castidade] é enterrada viva perto do portão chamado Collina, onde se ergue um pequeno monte de terra, dentro da cidade, que se estende por uma pequena distância, chamado em latim agger, sob o qual é construído um cômodo estreito, ao qual se desce por escadas; ali preparam uma cama, acendem uma lâmpada e deixam uma pequena quantidade de provisões, como pão, água, um balde de leite e um pouco de azeite […] (op. cit., p. 54)

Quando você lê historiografia romana sobre as vestais, vai ver uma ênfase imensa na sua punição, nos casos em que elas eram descobertas quebrando seu voto de castidade e punidas. Mas isso foi a exceção à exceção da regra: em quase 1000 anos da instituição das vestais, somente 19 sofreram pena de morte por crimen incestum (ou crimes à castidade) (Dolansky, 2013, p. 6975; Beltrão, Horvat, 2018, p. 178) A ideia é que nenhum romano, senão o pontifex maximum, tinha autoridade para encostar um dedo em uma vestal: mesmo quando encontrada em pecado, ela continuava sendo sagrada. Mesmo morta, seu corpo era sagrado. Havia também leis que proibiam o enterro de romanos dentro da cidade (por motivos sanitários, para evitar proliferação de pestes em uma cidade já assolada por pestes). Mas, sendo um corpo sagrado, a vestal não podia ser enterrada fora da cidade, sob o risco de ser violada por uma besta. Solução: elas eram emparedadas vivas nas muralhas da cidade, justamente a região limítrofe entre Roma e o mundo exterior.

Mas ser uma vestal tinha suas vantagens. Nenhuma mulher teve mais direitos e regalias no mundo romano do que uma virgem vestal, na verdade; eu cito a partir do artigo da Cláudia Beltrão e Patricia Horvat:

É possível que as Vestais fossem um sacerdócio originalmente relacionado a ritos de purificação que gradualmente recebeu crescente destaque político, conectando cultos públicos e familiares. […] as Vestais estavam no centro da atividade religiosa de Roma, ao mesmo tempo que possibilitavam o culto privado. Mesmo em termos espaciais, as Vestais estavam no coração da atividade pública romana, o Forum Romanum, e era considerado nefasto se elas ou seus objetos sagrados deixassem Roma. […] Elas até mesmo atuavam como uma espécie de despachantes com fé pública, por exemplo, guardando testamentos famosos, contratos e outros documentos. (Beltrão & Horvat, 2018, p. 177)

No Coliseu, vestais tinha um assento reservado nas melhores fileiras, ao lado dos patrícios. Elas eram presença constante nos banquetes da alta sociedade. Sendo intocáveis, e habitando um templo sagrado que só uma vestal podia acessar, no Forum Romanum, ter uma amiga e confidente vestal era o melhor jeito de você ter seus segredos e documentos importantes guardados. Assim, elas ganharam poder político. Plutarco comenta isso numa época em que todo mundo sabia que uma vestal era uma mulher livre, desimpedida e com fortes laços políticos em Roma, e diz:

Alguns acreditam que essas vestais não tinham outra função além da preservação do fogo [sagrado da cidade]; mas outros concebem que elas eram guardiãs de outros segredos divinos ocultos de todos, exceto delas mesmas […] (op. cit., p. 55)

O fogo a que Plutarco se refere era uma grande pira situada no centro do prédio das vestais que você pode ver em ruínas na cidade de Roma, como Templo da deusa Vesta. Diferente dos demais templos, esse é circular, e não tem quaisquer estátuas: o fogo em seu centro nunca podia ser apagado (e dizem que se as vestais deixassem o fogo apagar, elas chicoteadas pelo Pontifex Maximus e provavelmente tempos difíceis viriam para os romanos). Isso tudo é profundamente simbólico, até irracional, mas Roma funcionava a partir de símbolos: a religião romana é uma mescla de sistemas de valores e símbolos cumulativos, constantemente referidos por rituais anuais, sobreposta a uma forte crença no destino da cidade. Esse destino único de Roma estava sendo desvendado a seus habitantes conforme o tempo passava: a tarefa dos sacerdotes era explicá-lo para os imperadores e populações. A presença das vestais dizia respeito à manutenção dos rituais, mas elas também estavam subordinadas à fatalidade do destino da cidade. O fogo perpétuo que queima no centro de Roma simbolizava o fogo das lareiras de cada lar, que garantia o conforto e preparação de alimentos da população; era preciso que "suas chamas puras e incorruptas [fossem] adequadamente confiadas a pessoas castas e imaculadas." Aqui entrava as vestais, e seu significado profundo para a manutenção da ordem na cidade. Cito a Beltrão mais uma vez:

Religião era uma das formas de manutenção do poder. A outra eram os rituais. "eram os rituais que garantiam as relações entre os dois grupos, homens e deuses. Garantir os ritos representava a certeza da manutenção da sociedade como a queriam: ordenada e segura. Ao respeitar as regras de comportamento, como o respeito aos deuses, sobretudo em seus espaços, ao curvar-se sob a autoridade dos rituais, o cidadão garantia a ordem social, e a pax deorum e as práticas que acarretavam a transgressão à ordem vigente podiam levar a sociedade ao caos e à desagregação. (Beltrão, 2006, p. 146)

Então, se algo de errado estivesse acontecendo com Roma, elas seriam as primeiras para quem olhariam com desconfiança. Isso aconteceu em diferentes momentos de crise no império; uma ocasião em 216 AEC e outra em 114 AEC são vistas pela historiografia como exemplos clássicos de momentos de crise militar do Império em que vestais foram feitas de bodes expiatórios. (Staples, 1998, p. 138). O exemplo mais antigo foi aquele em que as tropas romanas, na Segunda Guerra Púnica, tomaram uma surra do cartaginense Aníbal na Batalha de Canas. Calcula-se que 86.000 romanos morreram na batalha; foi uma carnificina. Chegando em casa, duas virgens vestais de nome Opimia e Floronia foram condenadas e punidas por crimes contra a castidade, em um julgamento apressado e sugestivamente injusto com elas. Em situações de crise cívica como essa, a aparência de uma vestal podia servir de motivo suficiente para sua perseguição: iam implicar com o modo como elas se vestiam, como se portaram em tal e tal banquete, e iam achar um motivo para levá-la a juízo. Nesse sentido, as vestais não fugiam do destino das demais mulheres romanas. Para todas as demais mulheres, pobres ou privilegiadas, seu corpo pertencia ao seu pai, marido ou tutor legal.

Mas o corpo de uma vestal não deveria pertencer a nenhum homem particular, pois ela, de certa forma, personificava a própria deusa Vesta e incorporava a res publica. (Beltrão & Horvat, 2008, p. 183)

Então ela pertencia a cidade. E uma crise na cidade seria atribuída a ela. Eventualmente, ela própria poderia ser feita de sacrifício em prol do bem-estar e da estabilidade da cidade.

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Após 30 anos de serviço, uma vestal estava liberada de seus encargos. Antes disso, ela passou 10 anos instruindo a próxima geração de garotas para tomar seu posto. Algumas continuavam a se dedicar à vida religiosa da cidade mesmo depois de sua "aposentadoria"; outras tomavam parceiros sexuais, embora pouquíssimas aceitassem se casar e se submeter a um homem e o sistema rígido de submissão em prática na Roma antiga.

Eu fecho com uma consideração sobre o fim do culto à deusa Vesta. À medida que Roma se convertia ao cristianismo, após o século III, o Templo de Vesta acabou sendo fechado. Mas, enquanto os cristãos em ascensão viam isso como algo progressivo, os que ainda acreditavam nos antigos deuses e deusas de Roma ficaram horrorizados. O que aconteceria com o império já cambaleante se a chama de Vesta não ardesse mais? Para muitos, era o sinal de outro desastre iminente.

Segundo Zósimo, um historiador grego, desafiar as vestais e sua deusa implicava em futura desgraça do Império. Na Nova História, Zósimo (1814, p. 163) descreve uma cena em que Serena, sobrinha do Imperador Teodósio e uma cristã, entrou no templo de Vesta, pegou um colar de sua estátua e o colocou em volta do próprio pescoço. Uma velha sacerdotisa, vendo o que Serena havia feito, a repreendeu. Serena zombou da mulher idosa e saiu. A Vestal rezou para que a jovem pagasse por sua impiedade. Serena então passou a ser atormentada por sonhos. Nos anos de invasões bárbaras por tribos godas, Serena foi acusada de conspirar com os invasores e foi executada no ano de 409 EC. Roma caiu logo em seguida.

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Esses foram quadros da religiosidade cívica romana; se você não fosse parte do sacerdócio, religião e costumes, superstições populares se misturariam como uma só coisa. Mencionar a deusa Vesta ou o deus Marte seria algo que você faria por força do costume, mas fora dos rituais coletivos, a religião pouco afetaria sua vida. Nada comparado à lógica da repetição do gesto ecumênico no Catolicismo, ou da constante reflexão sobre os preceitos religiosos para os muçulmanos. Igualmente, estudando a natureza cívica dessa religiosidade, entendemos melhor o conflito de Décio e Diocleciano com os cristãos, no século II: alguns agrupamentos cristãos foram vistos como dissidentes políticos, sobretudo, por não aceitarem cumprir os ritos à autoridade romana que remontavam ao início do cidade, lá no século 8 AEC. Aos olhos dos imperadores, eles estavam deixando claro que não aceitavam dar mostras de lealdade ao poder centralizado em Roma e não cooperariam com a expansão e manutenção imperial.

Nós, brasileiros, temos a sorte de termos duas grandes estudiosas sobre as vestais trabalhando em nossas universidades e produzindo material a respeito em português; cheque o trabalho da professora Cláudia Beltrão e de Patricia Horvat. A melhor introdução a religião romana que li é da primeira:

Beltrão, C. "A religião na urbs" In: Mendes, N.M.; Silva, G.V. Repensando o Império Romano: perspectivas socioeconômicas, política e cultural. Rio de Janeiro: Mauad/EDUFES, 2006, p. 137-159.

Demais referências de tudo que li segue na descrição do episódio.

Referência bibliográfica

Beltrão, Cláudia. "A religião na urbs" In: Mendes, N.M.; Silva, G.V. Repensando o Império Romano: perspectivas socioeconômicas, política e cultural. Rio de Janeiro: Mauad/EDUFES, 2006, p. 137-159.

Beltrão, Cláudia; Horvat, Patricia. The Name of the Vestal, or When a Vestal is Named. Archimède: archéologie et histoire ancienne: „Archéologie et histoire ancienne", Nº 5, 2018, pp.175-184.

Dolanksy, Fanny. Vesta and Vestals. In: The Encyclopedia of Ancient History, First Edition. Edited by Roger S. Bagnall, Kai Brodersen, Craige B. Champion, Andrew Erskine, and Sabine R. Huebner. Blackwell, 2013, p. 6975-6976.

Matyszak, Philip. Ancient Rome on 5 Denarii a Day. London: Thames & Hudson, 2018.

Matyszak, Philip. 24 Hours in Ancient Rome. A day in the life of the people who lived there. London: Michael O'Mara Books, 2017.

Plutarch. The Lives of the Noble Grecians and Romans. (Trad. John Dryden). London: Encyclopedia Britannica, 1952, p. 49-61.

Staples, Ariadne. From Good Goddess to Vestal Virgins: Sex and Category in Roman Religion. London: Routledge, 1998.

Zosimus. New History. London: Green and Chaplin, 1814.