por F.V.Silva
O Evangelho de Maria, apesar de ter se preservado em fragmentos, oferece uma janela singular para os conflitos de autoridade nos primórdios do movimento cristão. Temos ele em três versões: o fragmento mais completo é uma tradução copta adquirida por um colecionador berlinense em 1896, de um negociador no Cairo, enquanto outros dois, mais antigos e datados provavelmente do século II, não acrescentam trechos significativos. O que sobreviveu do texto começa no capítulo 4, e calcula-se que temos pouco menos da metade do texto original. E este documento não é um evangelho no sentido biográfico dos cânones, mas sim no sentido primordial de uma "boa nova": uma mensagem redentora e misteriosa comunicada através da figura sobrenatural de Cristo e de seus apóstolos. A análise de seu conteúdo revela não apenas uma sofisticada estruturação teológica fundida com conceitos da filosofia grega, mas também uma luta política sexual pela liderança e voz no interior da comunidade, colocando em confronto direto as figuras de Maria Madalena e Pedro.
A autoridade eclesiástica feminina é o eixo central do texto. A provável autoria ou ditado por uma mulher, ou sua origem em uma congregação onde mulheres detinham posições de poder, é inferida a partir do próprio conteúdo narrativo. A Maria aqui retratada é identificada como a Maria de Magdala, a mesma que andou com Cristo e serviu de primeira testemunha de sua ressurreição. Em demais textos apócrifos como o Pistis Sophia e o Evangelho de Filipe, ela é consistentemente elevada à condição de figura especial dentro do círculo de Cristo; sendo reiterado que "ninguém foi tão amado por Cristo quanto Maria Madalena". Esta proeminência sugere a existência de congregações que a consideravam a legítima sucessora de Jesus, em oposição a Pedro, posteriormente instituído como baluarte da Igreja Católica e seu primeiro papa. A construção literária desses personagens ao longo de três séculos é reveladora: Simão Pedro é um camarada irascível e raivoso, algo que o leva a cortar a orelha de um homem para defender Jesus em um episódio famoso de João 18:10-14; Maria, em contraste, é sábia, serena (ela é detentora da apatheia, para falarmos com os gregos), e não teme fazer perguntas que constrangem seus interlocutores, incorporando assim ideais da filosofia grega em um ambiente de tradição judaica. Para ela não existem tabus e hierarquias entre homens e mulheres -- a sua versão da doutrina cristã transcende diferenças sexuais e considera seres humanos como entes espirituais e iguais perante a esfera divina. O humano é uma alma; seu corpo material é um detalhe sem substancialidade.
A natureza grega do evangelho é o primeiro dado de interesse para nós. Sua linguagem e conceitos são profundamente influenciados pelo médio platonismo, estoicismo e hermetismo. Deus é referido exclusivamente como "O Bem", ecoando diretamente a filosofia platônica na República, e os ideais éticos disseminados são congruentes com escolas de pensamento em voga na Era Helenística, principalmente o estoicismo. Esta matriz filosófica talvez explique a posterior rejeição e difamação de Maria Madalena pela Igreja Católica institucionalizada. Foi o Papa Gregório I que, sem qualquer comprovação, a retratou como uma prostituta arrependida, perpetuando um projeto de difamação que, no fundo, não encontra respaldo nos textos bíblicos. Maria de Magdala (ou Madalena) muito provavelmente era uma mulher endinheirada das altas classes que dedicou suas riquezas para subsidiar o movimento cristão, não uma mulher estigmatizada vivendo às margens da sociedade romana. E eis mais um dado que nos leva a crer que foram os católicos que atribuíram essa imagem a ela: no Cristianismo oriental, essa associação entre Maria e prostituição nunca se difundiu; ela permanece como uma figura equiparada a santos e mártires na Grécia e na Rússia atuais. Este embate por imagens de Maria Madalena, no fundo, reflete uma luta mais ampla do catolicismo incipiente contra uma autoridade exclusiva de homens (os padres da Igreja) e uma autoridade clerical feminina do cristianismo primimitivo, que resultou na progressiva marginalização das mulheres, tornando-as, na hierarquia eclesiástica final, cidadãs de segunda classe em assuntos espirituais. Mulheres eram e continuam sendo, no catolicismo, cidadãs de segunda classe em assuntos espirituais. Uma Madre Superior, líder de um convento de freiras, tem menos acesso a rituais que um simples padre de província, por exemplo; o padre pode administrar eucaristia e rezar missas, ao mais alto dos cargos femininos esse tipo de coisas está vedado. Não foi sempre assim, e a gente vai ver o que teria sido uma doutrina se mulheres mantivessem sua posição de prestígio, sob a autoridade simbólica de Maria de Magdala.
Resumo do texto
Capítulo 4
O capítulo começa num cenário onde os discípulos estão em diálogo com o Cristo recém-ressurreto, antes de sua partida para os céus. Eles estão aterrorizados com o fato de que sua cabeça pode ser a próxima a rolar, se assustam com o Cristo ressurreto, e fazem uma porção de perguntas sobre o futuro do movimento. Uma dessas perguntas diz respeito à destruição de seu corpo: Cristo responde que toda a natureza, todas as formações e criaturas, coexistem e voltarão às suas próprias raízes, pois a natureza da matéria encontra seu fim nas raízes de sua própria essência. É um papo abstrato que soa como neoplatonismo; Cristo aqui cumpre bem a figura de um veiculador de mistérios quando os discípulos aparentemente: "nós também seremos caçados pelos romanos e crucificados, ou não?" (A gente já volta nisso).
Simão Pedro aqui pergunta: "Qual é o pecado do mundo?". E novamente, a resposta vai ser algo surpreendente: não existe pecado inerentemente; são as pessoas que recorrem a erros ao praticar ações semelhantes à natureza do adultério (ou do adulterar de algo), a isso chamamos popularmente pecado. Então ele explica que o "Bem" veio até eles para restaurar cada natureza à sua fonte. É por se privarem d'Aquele que pode curá-las que as pessoas adoecem e morrem.
Ele prossegue, dizendo que a matéria infunde em seres de luz as paixões, que surgem de algo contrário à natureza, causando um distúrbio em todo o corpo. Por isso, Ele os exorta a terem coragem e confrontarem as diferentes manifestações dessa paixão:
- Obscurantismo: Representa a falta de iluminação espiritual.
- Desejo: O anseio excessivo por coisas materiais ou efêmeras.
- Ignorância: A ausência de conhecimento espiritual e compreensão.
- Zelo pela Morte: Uma inclinação para o que é transitório ou destrutivo.
- O Reino da Carne: O domínio das necessidades e desejos físicos do corpo.
- A tola "sabedoria" da carne: Um falso conhecimento que não leva à verdade espiritual.
- A "Sabedoria" da Raiva: A inteligência distorcida pela fúria ou pela cólera.
Ao se despedir, Cristo manda um salve para todos e diz: "A paz esteja convosco. Recebei a minha paz". E os adverte: "Cuidado que ninguém vos desvie, dizendo 'Vejam aqui' ou 'Vejam ali'! Pois o Filho do Homem está dentro de vós. Segui-O! Aqueles que O buscam O encontrarão". (Ou seja: a possibilidade da salvação reside dentro deles, como princípio, não exteriormente; já falamos disso)
Ele então ordena que preguem o evangelho do Reino, mas que não estabeleçam regras além das que Ele lhes determinou, nem inventem história e misturem suas próprias convicções com a doutrina, para que não sejam constrangidos. Dito isso, Ele parte. Provavelmente desparece e seu corpo fica, morto. (Mais dois dados chocantes e diferentes da doutrina ortodoxa até aqui: a salvação está dentro de cada um, como uma forma de gnose, e não há pecado; há desvios do ser humano de sua verdadeira natureza -- essa é a doutrina do médio platonismo e de alguém como Plotino, mais tarde, e que discutimos no vídeo sobre a Questão do Mal em Plotino.)
Os discípulos ficam profundamente decepcionados e choram, temendo continuam o movimento cristão e pregar para gentios cada vez mais hostis, e questionam: "Se não pouparam a Ele, como nos pouparão?" Nossas suspeitas iniciais se confirmam; eles estão preocupados com a própria pele.
Maria Madalena é quem então se levanta, saúda a todos e pede para não chorarem, pois a graça do Senhor estará com eles. E aí ela começa a explicar o sentido dos ensinamentos do Messias -- algo que eles parecem ter sido incapazes de entender andando 24h por dia ao lado de Jesus (essa é uma constante em textos do gnosticismo; a ideia de que você pode ter contato direto com a fonte de revelação espiritual e ainda ser incapaz de entender sua mensagem).
Pedro reconhece que Jesus amava Maria mais do que todos, e pede que ela compartilhe as palavras do Salvador que eles não ouviram. Aqui reside uma ideia de que haveria uma mensagem secreta, apócrifa, passada só para Maria e não para os demais. E Maria começa a relatar uma visão que teve.
"Eu vi o Senhor em uma visão" -- é assim que ela começa. E ela não vacila como todos os outros que têm visão na Bíblia canônica. Ele reconhece que esse é um sinal da constância de Maria Madalena, e elogia: "Onde está a mente, aí está o tesouro". Ela tem a cabeça no lugar, em outras palavras. Maria então questiona como alguém é capaz de ter uma visão (um assunto central para a doutrina cristã): se através da alma ou do espírito [a mente, onde ocorreu a inteleção]. O Messias responde misteriosamente: nenhum dos dois; é através da mente que está entre os dois que se vê a visão. Provavelmente ele está remetendo à doutrina da esfera noética dos platonistas, a zona compartilhada de inteligibilidade, e não de algo místico: visões só confirmam o que já existe no mundo das ideias e pode ser reconhecido por todos. Não há nada de sobrenatural nelas. Para nossa infelicidade, o manuscrito tem páginas falta justamente aqui (11-14), e a gente não sabe como termina o relato.
Num capítulo posterior, o texto começa no meio de um estranho diálogo sobre a alma e os "poderes" com que ela se depara em sua ascensão. Leiamos isso como um diálogo alegórico.
Aqui Poderes = forças ou dificuldades coisas contra as quais você luta. Um desses poderes é chamado "Desejo", que meio que diz à alma: "você é minha". A alma responde que já serviu ao desejo como uma veste, mas que este não a reconheceu. Ao dizer isso, a alma segue adiante e fala com outro, um terceiro poder, a "Ignorância", que a faz questionar a suas próprias certezas. Elas debatem em um diálogo confuso, a Ignorância é superada, e a alma ascende ainda mais. Ela encontra o quarto poder, que possui sete formas: 1) Trevas, 2) Desejo, 3) Ignorância, 4) Excesso (ou zelo pela morte) 5) Esquecimento (a escravidão ao corpo físico), 6) Sabedoria da carne, e 7) Ira. Estes são as sete potências da ira. Isso lembra a listagem do capítulo 4, e parece esboçar um sistema ética de alguma vertente cristã que se perdeu. A própria ideia dos 7 pecados capitais foi formulada fora da bíblia, só no século VI, na literatura monástica. Quando a gente se depara com essas alegorias de 7 forças, parece haver uma tendência mais antiga de sistematizar uma doutrina ética unificada por meio de historietas abstratas do tipo.
Essas potências perguntam à alma: "De onde vens, assassina de homens, ou para onde vais, destruidora de reinos?". A alma responde: "O que me prendia está morto, o que me revolvia foi vencido, meu desejo findou e a ignorância morreu. Fui libertada de um mundo em um éon, e de um tipo que é superior, e da cadeia de esquecimento que só existe no tempo. A partir de agora, alcançarei meu repouso [...] no silêncio".
Aqui acaba o relato da visão em que Maria conversou com Cristo, supostamente.
A reação dos discípulos é imediata e os divide em dois grupos. André expressa certa incredulidade, dizendo que aqueles ensinamentos são "ideias estranhas" e que não acredita que o Salvador tenha dito aquele monte de coisas. Pedro questiona com raiva: "Ele realmente falou em particular com uma mulher, em vez de falar abertamente para nós? Será que temos que nos voltar a si e, todos, ouvi-la?".
Maria chora e responde a Pedro: "Irmão Pedro, o que pensas? Achas que inventei isso em meu coração, ou que estou mentindo sobre o Salvador?".
Na última cena, Levi intervém em defesa de Maria, repreendendo Pedro por seu temperamento ardente e por brigar contra essa companheira de andanças como se ela fosse uma adversária. Ele argumenta: "Se o Salvador a tornou digna, quem és tu para rejeitá-la? Certamente o Salvador a conhece muito bem. É por isso que Ele a amou mais do que a nós". Ele conclui exortando todos a envergonharem-se, vestirem a imagem do "Homem Perfeito" e, como ordenado, irem pregar o evangelho, sem estabelecer nenhuma outra regra ou lei além daquelas ditas pelo Salvador.
Diante das palavras de Levi, os discípulos se acalmam e começam a sair para proclamar e pregar. A pergunta que fica sem responder é: pregar qual versão do evangelho?
Interpretações e significado
Agora falamos sobre interpretações possíveis de algumas cenas e o significado mais amplo do Evangelho de Maria.
Karen L. King explica que a discussão entre os discípulos reflete controvérsias sobre quem compreende verdadeiramente os ensinamentos de Jesus. O Evangelho de Maria é o único evangelho cristão primitivo a chegar até nós que foi atribuído a uma mulher, e ali Maria é apresentada como a discípula modelo, de caráter estável e conhecimento avançado, enquanto Pedro não consegue ver além do corpo material e do gênero dela, falhando em compreender sua natureza espiritual. A liderança ali proposta, portanto, deve ser baseada na capacidade de entender os ensinamentos, atender às necessidades dos outros e pregar o evangelho, e não em distinções materiais ou de gênero.
A questão da suposta identidade gnóstica do texto é fundamental. Diferente de outros textos explicitamente gnósticos, aqui não há nenhuma menção à cosmologia desse movimento -- não se fala de Barbelo, de Yaldabaoth ou dos arcontes, embora eu ache difícil não fazer relações com a doutrina de salvação do gnosticismo -- na qual a redenção não vem da graça da divindade, mas da busca individual do fiel por conhecimento do mundo transcendente. A soteriologia do Evangelho de Maria não se centra em um céu ou inferno escatológicos, mas em uma salvação entendida como compreensão dos ensinamentos do redentor e superação de uma 'adulteração' metafísica --- é assim que o pecado é definido aqui, como uma corrupção da verdadeira natureza humana. Trata-se de uma salvação na vida, um reflexo de um estado mental, muito próxima a ideias que vimos do médio platonismo e do neoplatonismo. Doutrina da matéria como transitória, mesma coisa: ela não é da ortodoxia cristã, mas do gnosticismo. Quando o próprio Redentor diz que 'Não existe pecado', a gente deve encarar isso como uma continuação do mesmo raciocínio -- tudo que existe emana de uma criação fundamentalmente boa. O medo da morte, que paralisa os apóstolos, é o ponto de partida que Maria busca superar ao transmitir os ensinamentos secretos, e em que medida eles estão fora de sintonia como uma existência não materialista que, no fundo, é o cerne da doutrina verdadeira.
Para resumir bem a coisa, os ensinamentos centrais do 'Salvador' no evangelho (que aqui não é chamado de Jesus Cristo em ponto algum) incluem:
- A natureza material (incluindo o corpo e o mundo) é temporária e se dissolverá em suas origens.
- Não existe o "pecado" como uma entidade, pois a existência é inteiramente boa. O que é chamado de pecado é, na verdade, um apreço inadequado à natureza material e um afastamento de Deus, causado pela ignorância e por paixões enganosas.
- A cura para a morte e as doenças da alma vem do conhecimento preciso da verdade e da natureza espiritual humana.
- Os discípulos devem buscar a salvação dentro de si mesmos, em sua essência espiritual.
- A jornada da alma após a morte também ilustra o caminho espiritual nesta vida, que requer a rejeição de falsos ordenamentos e da violência para que a pessoa alcance a liberdade e o repouso final.
Contexto Histórico e Autoria
A tradutora situa o Evangelho de Maria no século II EC., provavelmente composto no Egito ou na Síria. Ele representa uma forma de cristianismo moldada em um ambiente majoritariamente gentio (não judeu), permeado pela filosofia grega (como o platonismo e o estoicismo), e não por especulações teológicas judaicas. Jesus é chamado de "Salvador" e "o Bom", termos com ressonância na piedade grega, e não de Messias ou Yeshua.
A autoria é atribuída a Maria (muito provavelmente Madalena) não porque ela seja a autora literal, mas porque uma comunidade cristã primitiva apelava à sua autoridade apostólica para legitimar seus ensinamentos.
A defesa de Levi e a subsequente partida deles para "pregar o evangelho" esboçam a possibilidade de um cristianismo alternativo, onde o sexo e gênero de uma pessoa não determina a integridade espiritual ou a capacidade de liderança, uma forma de comunidade que pode ter florescido séculos antes da hegemonia do modelo católico romano, que, como visto em passagens paulinas como 1 Coríntios 14, buscava silenciar as mulheres no espaço eclesial. O Evangelho de Maria se afirma, portanto, não apenas como um repositório de ensinamentos secretos, mas como um testemunho de uma possível luta por um modelo de igreja que não vingou. Que foi substituído pelo modelo paulino e, depois, católico onde o clero detentor de autoridade é 100% masculino.
A rejeição do sacerdócio feminino na Igreja Católica não foi uma invenção do Papa Gregório I, que inventou a ideia de Maria Madalena como uma prostituta reformada, mas foi ele quem, no século VI, consolidou e impôs essa visão com uma autoridade que ecoaria por séculos. Sua atitude foi moldada pelo contexto patrístico daquela época, que a gente talvez tenha chance de discutir mais para frente. Fundamentalmente, essa doutrina se baseava no princípio de que o sacerdote age "in persona Christi" (na pessoa de Cristo). Como Cristo era homem, acreditava-se que a representação sacramental, especialmente na Eucaristia, exigia uma "semelhança natural" do gênero masculino, vista não como um acidente, mas como uma escolha divina que estabelecia um paradigma eterno. O argumento parece piada, mas ele foi fundamentado a sério pelos mais renomados padres da Igreja. Santo Agostinho inclusive.
Gregório foi motivado a dar um ultimato à autoridade feminina ao seu informado que diaconisas na Gália estavam batizando e até mesmo presidindo missas. Então ele enviou uma carta severa contra os bispos da região -- estamos falando aqui do ano 591 EC --, ordenou o fim imediato dessas práticas, argumentando que elas eram uma transgressão contra o costume e um escândalo para a Igreja. Enquanto ele tolerava, com relutância, que uma leiga batizasse em risco de morte iminente, considerava um desvio grave uma diaconisa fazê-lo regularmente, e a ideia de uma mulher presidir a Eucaristia era simplesmente impensável. Nessa manobra, Gregório atuou como um agente crucial do patriarcalismo que proliferou em diferentes instâncias culturais posteriores. A liderança litúrgica feminina, que veio de uma possível vertente pautada na autoridade de Maria Madalena e teve atuação até o final do século VI, sumiu da noite para o dia.
Esse não é um desenvolvimento antigo, portanto, que ficou lá atrás.
Papa Paulo VI (1976): Em resposta ao movimento feminista e a discussões dentro de igrejas protestantes, ele publicou a Declaração Inter Insigniores, da Congregação para a Doutrina da Fé. O documento reafirmou a proibição com três argumentos centrais:
- O Exemplo de Cristo: Jesus escolheu apenas homens como seus Doze Apóstolos (o apócrifo de Maria Madalena questiona isso, como a gente viu).
- A Prática da Igreja: A Igreja sempre se entendeu vinculada a essa escolha de Cristo.
- A Igreja como Esposa de Cristo: O sacerdote, como machão, representa Cristo, o Esposo, diante da Igreja, que é sua Esposa.
Papa João Paulo II (1994): Ele deu o passo final, tornando a questão inquestionável e definitiva. Na Carta Apostólica Ordinatio Sacerdotalis, ele declarou:
"Portanto, para que seja excluída qualquer dúvida em assunto da máxima importância, que pertence à própria constituição divina da Igreja, em virtude do meu ministério de confirmar os irmãos (cfr Lc 22,32), declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja."
Teve que vir o protestantismo para aceitar bispas e pastoras, mas mesmo assim isso levou séculos. No Brasil a primeira pastora foi ordenada em 1973, na Igreja Metodista, e recomendo a leitura do artigo do Wikipedia "Ordenação de mulheres" para mais detalhes.
Em suma: houve vertentes mais progressivas no cristianismo primitivo, e elas foram sem exceção suprimidas via o acordo entre o poder da igreja católica e o poder político do Império Romano. O catolicismo estava longe de ser a única opção para o movimento cristão, mas acabou saindo vencedor.