O que é Gnosticismo?
Publicado em 12 de maio de 2025
Gnosticismo foi uma vertente histórica do cristianismo primitivo que defendia uma visão radicalmente dualista de existência. Seus seguidores acreditavam que o mundo material foi criado por uma entidade maligna, que geralmente identificavam como o demiurgo, e não por um Deus verdadeiro. Essa seria a divindade que rege o mundo e nossas vidas: alguém mal-intencionado e, em última estância, estúpido. Por isso, a salvação humana não seria alcançada através de ritos externos, da adesão a credos ou da obediência a uma hierarquia clerical, mas por meio de uma experiência mística e direta com o verdadeiro princípio divino -- experiência conhecida como gnosis, um termo grego que significa "conhecimento". Esse conhecimento não seria intelectual como foi para os platonistas, mas uma iluminação espiritual, uma revelação da centelha divina aprisionada dentro de cada indivíduo, que permitiria a libertação da corrupção do mundo material.[1]
Contexto Histórico
Toda explicação que eu der da filosofia do gnosticismo e seus representantes partirá do trabalho do Daniel McCoy; ele estudou o fenômeno por anos, leu cada um dos manuscritos que chegaram a nós e fez um site só para isso, https://gnosticismexplained.org/, onde disponibiliza esse material. É um projeto parecido com o que tenho, com este canal e sua versão em hipertexto, doencastropicais.neocities.org, embora escrito por um homem muito mais entendido e competente que eu. Eu seguir resumo parte de seus resultados:
O gnosticismo é um produto dos séculos I a IV EC e do Império Romano, quando o movimento cristão ainda era jovem, diversificado e desprovido de estrutura unificada. Ainda não existia um cânone fixo das Escrituras (uma Bíblia Sagrada), um credo universal, instituições estabelecidas (como a Igreja Católica) ou uma hierarquia clerical claramente definida. O cristianismo aqui é melhor entendido como um campo de disputa interpretativa, onde diferentes grupos se estapeavam para definir o que significava ser um seguidor de Jesus. Há registros de agrupamentos cristãos que tinha um evangelho só (Evangelho de Marcos), mais uma porção de livros proféticos judaicos, e umas duas epístolas de Paulo. E -- para tornar nossa análise historiográfica mais interessante -- eles às vezes tinham livros que hoje não são reconhecidos como parte da Bíblia. Você viajava por 20, 30km, outra congregação de pessoas autodenominadas cristãs tinha dez evangelhos diferentes, contando versões da história de vida de Cristo que nem ouvimos mais falar. Isso mais uma porção de texto gnósticos, que, dali a um século, a Igreja Católica chamaria de heresia, e identificariam como doutrinas de diferentes grupos: sethianos, valentinianos, mais tarde os cátaros, e por aí vai. As interpretações de questões básicas de teologia variavam muito, como consequência, e quanto mais o tempo passava, mais heterogêneo o cristianismo se tornava. Para todos os fins, foi nesse cenário, o gnosticismo que emergiu como uma corrente teológica, com tanto direito de se autodenominar "cristã" quanto qualquer outra. Gnósticos não queriam ser uma dissidência, mas antes se entendiam como detentores da verdadeira mensagem do Messias. Em suma, os conceitos de "ortodoxia" e "heresia" ainda não estavam solidificados e tiveram que ser inventados quando veio a instituição católica, ligada ao poder político do Império Romano do Ocidente, e impôs uma unificação doutrinária.[2]
A Base Filosófica: O Dualismo Anticósmico
A teologia gnóstica era fundamentada em um dualismo radical conhecido como "anticosmismo". Isso significa que os gnósticos se posicionavam contra o universo supostamente ordenado pela razão (o cosmos do Platonismo). Eles entendiam que a matéria e o divino eram antagônicos -- e até aqui eles estão próximos às doutrinas médio platônicas. A espiritualidade genuína, portanto, não consistia em buscar harmonia com um mundo intrinsecamente defeituoso, muito menos com o deus criador do Gênesis, visto por eles como uma entidade inferior e enganadora. Isso escandaliza uma porção de gente hoje, mas todo o Velho Testamento, para os gnósticos, devia ser interpretado ao contrário. Ele era o livro da perspectiva do inimigo e de um povo que adorou um picareta cósmico.
Pelo contrário, a verdadeira jornada espiritual era uma fuga dessa prisão terrestre, um despertar para a divindade transcendente que reside oculta no interior do ser humano, uma centelha divina que Cristo veio revelar.[3]
A Mitologia Gnóstica: Uma Releitura Radical da Criação
Parte dos livros gnósticos são elaborações de sua cosmovisão por meio da reinterpretação profunda dos mitos compartilhados pelos primeiros cristãos: a história da criação no Gênesis e a vida de Jesus. Seu mito da criação começa com o que chamam de "Deus verdadeiro", um ser tão perfeito e incompreensível que está além de qualquer limitação ou descrição, como detalhado em textos como o Apócrifo de João: "ilimitável, insondável, imensurável, invisível, eterno, inefável, inominável".[4] Essa é a teologia negativa típica dos neoplatônicos: você fala sobre o princípio primeiro e misterioso do cosmos como um vazio gerador de multiplicidade: como um não-finito, não-mensurável, não-perecível.
Deste ser supremo, teria emanado espontaneamente o Pleroma (a "Plenitude"), a dimensão espiritual perfeita que equivale ao céu cristão. Dentro do Pleroma, uma série de entidades divinas (aeons) surgiu.
A narrativa toma um rumo dramático quando surge Sofia (a "Sabedoria" personificada). Essa Sofia, num ato independente, gera um filho sem a participação do Pai divino. Esse filho é o demiurgo, uma criatura deformada e malevolente, frequentemente descrita com corpo de serpente e cabeça de leão: em algumas fontes você o encontrará como Yaldabaoth (Ιαλδαβαώθ)[5] (segundo Gershom Scholem, a etimologia possível desse nome é "Rei do caos" do aramaico, mas não se chegou a um acordo a respeito ainda).[6]
Yaldabaoth é expulso do Pleroma, e na sua solidão e ignorância completa, ele cria o universo material onde vivemos -- "E viu que era bom", porque ele é estúpido; na verdade este mundo não passa de uma cópia imperfeita e distorcida do mundo espiritual, o Pleroma. Essa é uma das razões de o mundo ser um vale de lágrimas e sofrimento, más escolhas, programação radiofônica ruim. O descompasso constitutivo do ser humano, que vemos nos platonismos, aqui é reinterpretado de um ponto de vista moral: o mundo é mal, e fonte da maldade. O bem existe para além dele, numa esfera divina que não o habita.
Algumas versões do mito gnóstico proporão um panteão de criaturas: o Demiurgo não trabalha sozinho, mas é auxiliado por arcontes (ou governantes, como demônios), seres grotescos que impõem um regime de terror sobre a humanidade. Mas já que a humanidade foi criada com partículas da luz divina (do Pleroma), ela traz algo do divino aprisionado dentro de seus corpos materiais. Há uma salvação possível, mas em geral seres humanos são escravizados de seus desejos por força da ação de arcontes para tornar nossas vidas miseráveis. Afinal, como afirma o Evangelho de Filipe, "o mundo veio à existência por um erro".[7] A condição humana não é resultado do pecado original de um Adão e uma Eva da mitologia judaica, mas de uma "queda" ocorrida no plano espiritual, antes mesmo da criação do mundo material. Não somos nós que somos entes caídos; somos produtos de um mundo defeituoso, e nossa maior maldição é a ignorância da centelha divina que habita em nós.
A Missão de Cristo como Libertador
A esperança gnóstica reside na figura de Cristo, que é meio uma personificação de uma pessoa histórica, e meio um símbolo ou modelo de indivíduo iluminado para outros. Aqui a gente encontra diferenças entre vertentes desse movimento. Cristo não é de qualquer forma aparentado com o demiurgo criador do planeta Terra, mas um enviado do Deus verdadeiro e transcendente para descer à terra, que só aparentemente tomou posse do corpo de um homem e percorreu o mundo ensinando o caminho para a gnosis. Ele não é material (porque isso negaria seu status divino), e se você fosse apertar a mão de Cristo na época em que viveu, veria que ele é uma espécie de holograma imaterial. Essa é uma implicação curiosa desse anticosmismo que pode ser facilmente ridicularizada, mas até aí gente: ninguém ressuscita dos mortos, ninguém nasce de uma virgem. Os ensinamentos desse Messias imaterial mostravam às pessoas sua verdadeira origem e natureza divina -- você, como outro ser humano com acesso à gnose, pode fazer o mesmo. Quando Jesus foi crucificado pelas autoridades terrestres (que agiam como agentes dos arcontes), o ser divino dentro só abandonou o corpo mortal e não sofreu nada, dando provas da imortalidade do espírito e sua invulnerabilidade a danos materiais. Não há a instituição do sacrifício para os gnósticos, tampouco suas implicações para os rituais que compõem essa religião: nada de jejum, castidade, mortificação da carne, porque a salvação tem a ver com uma jornada de conhecimento e um acentuar da sua fagulha divina, não com qualquer forma de atenção por sua parcela carnal. Mesmo que essa atenção seja expressa como uma forma de desprezo. Dessa forma, Jesus Cristo se tornou o modelo gnóstico de uma nova era de iluminação. Como novamente diz o Evangelho de Filipe, aquele que alcança a gnosis "não é mais um cristão, mas um Cristo".[8]
As Origens do Gnosticismo
As origens do gnosticismo é alvo de debate aberto; não há consenso entre historiadores da Antiguidade Tardia. As teorias podem ser agrupadas em duas grandes escolas. A primeira propõe que o gnosticismo surgiu fora do cristianismo, possivelmente em círculos judaicos ou platônicos dissidentes, e só posteriormente teria adotado uma roupagem cristã, quando essa já era uma religião dominante no século II para o III no Império Romano. A segunda escola, que ganhou força com base em evidências mais recentes, argumenta que o gnosticismo brotou de dentro do próprio cristianismo e eles se misturavam no início, como um desenvolvimento radical de ideias já presentes no final do século I EC.[9]
Dado importante aqui é que todos os textos gnósticos que possuímos são explicitamente cristãos, e os escritores antigos que os criticavam -- os chamados "heresiólogos", como Ireneu de Lyon -- sempre os trataram como uma corrupção da doutrina cristã, não como uma seita externa ou pagã. Se houvesse a suspeita de uma origem não cristã, certamente esses críticos a teriam usado para desacreditar ainda mais os gnósticos, mas não foi o caso.[10] Até mesmo o filósofo Plotino e seu pupilo Porfírio, que criticaram os gnósticos no século III por suas distorções da doutrina do platonismo, referiam-se a eles como "cristãos" e não os diferenciam dos que, pouco tempo depois dali, estariam reunidos sob o poder da Igreja Católica.[11] Isso indica que o uso de doutrinas platônicas pelos gnósticos não era incomum, uma vez que o cristianismo primitivo como um todo dialogava intensamente com a filosofia grega, especialmente o platonismo, para elaborar seu pensamento teológico -- a gente falou disso repetidas vezes ao longo desta série.[12]
A Conexão com o Apocalipticismo Judaico e a Evolução Interna
Para entender como o gnosticismo pode ter surgido do seio do cristianismo, nos ajuda olhar para a evolução das esperanças escatológicas dos primeiros seguidores de Jesus. (Escatologia é a doutrina segundo a qual há uma narrativa imposta pelo Divino para a raça humana e para o mundo -- é nessa área da teologia que se discute o fim do mundo, a salvação e danação das almas, etc. Não existe escatologia neoplatônica, embora o neoplatonismo tenha se vertido em algo próximo de uma religião; essa foi uma inovação trazida pelos hebreus, derivada da teologia da Aliança, para religiões diversas do Império Romano). Pois bem, o Jesus histórico, de acordo com consenso acadêmico, foi um de vários profetas apocalípticos judeus. Ele pregava que o fim da Era presente e a inauguração de um Reino de Deus físico e terrestre ocorreriam na geração de seus ouvintes, como atestam passagens do Evangelho de Marcos (8:38-9:1) -- eu o cito, deixo o trecho grego na tela, e você decide como interpretar: "Dizia-lhes também: Em verdade vos digo que, dos que aqui estão, alguns há que não provarão a morte sem que vejam chegado o reino de Deus com poder." (Marcos 9:1). "καὶ ἔλεγεν αὐτοῖς ἀμὴν λέγω ὑμῖν, εἰσίν τινες τῶν ὧδε ἑστηκότων οἵτινες οὐ μὴ γεύσωνται θανάτου ἕως ἂν ἴδωσιν τὴν βασιλείαν τοῦ θεοῦ ἐληλυθuῖαν ἐν δυνάμει".
A posição dos teólogos que trabalham a partir do texto original é a de que Cristo, Marcos e Paulo foram profetas do apocalipse iminente.[13] Cada um deles morreu, e essa expectativa não se cumpriu -- gerações e gerações dos ouvintes de Jesus Cristo morreram e o mundo não acabou --, as comunidades cristãs tiveram que reinterpretar radicalmente sua mensagem. Foi um período de provação que moldou o formato que o cristianismo tomou; por quase um século o cristianismo foi um movimento morno, decrescente, e de fato, os livros que compõe essa doutrina foram escritos depois da crucificação, como tentativa de revitalizar o culto em torno dessa figura messiânica. Não existe um só livro escrito por quem tenha conhecido Jesus Cristo e constatado que ele de fato existiu (os 4 evangelhos Mateus, Marcos, Lucas e João não foram escritos pelos 12 discípulos originais; o fato de seres nomeados a partir de alguns deles confunde alguns fiéis sem treino em teologia, e doam a esses textos uma autoridade histórica que é, no fundo, inexistente. Um dia falamos a respeito). Homens dos séculos II e III como Atanásio, Irineu etc propuseram uma organização canônica da Bíblia e colocaram o Evangelho de João como a palavra final sobre a vida de cristo, justamente o último e mais tardio dos evangelhos, porque esse livro traz a reinterpretação mais convincente de que -- veja bem, "vida e morte" nas falas de Cristo são metáforas para vida espiritual e morte espiritual. Aquele trecho de Marcos sobre "alguns de vocês vão ver o fim do mundo antes de morrerem" não tem nada a ver com uma morte biológica, mas custou para nossa comunidade entender essa mensagem porque os planos de Deus são misteriosos etc. Vocês conhecem o argumento.
Fiquemos com este dado para pensarmos em um primeiro momento formativo da teologia cristã: houve um processo de reinterpretação de mensagem profética original, e ele durou mais de uma geração; o autor de João estava escrevendo já por volta de 90-95 EC. E na minha leitura, esse é o evangelho que mais se mescla com doutrinas gnósticas -- por isso mesmo estudantes de teologia convictos do cristianismo não deveriam empurrar o gnosticismo de lado como uma curiosidade histórica extravagante somente: algumas ideias desses grupos na verdade salvaram a doutrina cristã e permitiram-na se reinterpretar convincentemente perante uma comunidade de fiéis desmotivada com a falta de entrega das promessas proféticas.
A crise, em resumo era: Passou-se quase um século, e nada do Reino de Deus e do fim do mundo. Para o autor de João, o Reino de Deus deixa de ser um evento futuro e material para se tornar uma realidade espiritual e presente, acessível no momento em que se crê em Jesus (e.g., João 3:36, 5:24).[14] O termo para crer, ter fé, você deve ter imaginado, é aquele antigo termo platônico: πιστεύω (pisteuō), que vem de pístis e é o termo relacionado à doutrina da preconcepção intuitiva de uma verdade. O ato de crer é um ato de transformação da consciência, antes de tudo; para o platonismo, essa transformação de consciência significava o reconhecimento da não-prioridade da matéria e essencialidade da esfera noética e verdades filosóficas; para o cristianismo joanino, é a convicção da doutrina ética e cosmogonia revelada pelo Messias. A grande questão é: não existia uma doutrina ética e cosmogonia una para os gnósticos e cristãos primitivos: cada grupo veiculou uma diferente, e essa foi a segunda briga generalizada nessas comunidades do Império Romano até a formalização da Igreja Católica.
Eu volto à interpretação de um autor do Evangelho João como alguém imerso no ambiente de platonismo e gnosticismo da época: esse camarada se refere a Cristo como o Lógos em João 1:1; reconta uma versão do mito da caverna em que o Messias entra num mundo de escuridão como uma luz que, a partir de então, tudo iluminará. As metáforas do gnosticismo também são recorrentes: a gnose é também uma revelação expressa como iluminação, como um esclarecimento de conceitos antes obscurecidos -- com isso não quero dizer que o autor do Evangelho de São João fosse um gnóstico, mas habitava um ambiente conceitual eclético e soube se valer das ideias corretas para recuperar a coerência da doutrina num momento de crise.
A maior diferença entre essa vertente joanina do pensamento teológico, o gnosticismo e o platonismo em voga, diz respeito a sua visão radicalmente negativa do mundo terreno. Diferente do caso do platonismo, aqui você não acesso ao divino por meio da sua razão pois "O mundo jaz no maligno" (1 João 5:19). O mundo é mal, e sua lógica é uma distorção da verdade divina, não uma mera hipóstase imperfeita. Por isso a fonte de comunicação entre o divino e o humano é inspiracional, é o oposto do racional -- qualquer interação científica e racional com esse mundo e sua história é vista com desconfiança por um gnóstico. Você tem que sentir o divino -- o termo grego para aqui é pisteou: um termo da teoria do conhecimento que consiste na intuição racional da estabilidade dos conceitos. Você "acredita" que 2 + 2 = 4 porque sua experiência, sua intuição aritmética adquirida, te apontam para a certeza desse resultado; isso é pistis na epistemologia do médio e neoplatonismo. Com João e os gnósticos, ela assume uma roupagem irracionalista e é reinventada como o sentimento vago de "fé", uma espécie de pronoia espiritual que inexiste na maioria das religiões mundiais. Fé não é um sentimento natural ao ser humano, ela é parte da cultura do cristianismo (e não de várias religiões indígenas à Ásia, Pacífico e África, por exemplo), e começou a ser formulada no final do século I.
Em suma: enquanto profetas do apocalipse judeus acreditavam que a época atual era má, mas o mundo era basicamente bom e seria restaurado, tanto o Evangelho de João quanto o gnosticismo apresentam o mundo como intrinsicamente hostil à esfera divina (João 1:10, 15:18, 17:25). A Primeira Epístola de João vai além: "Não ameis o mundo, nem as coisas que há no mundo. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele" (1 João 2:15). Aqui já encontramos, em forma embrionária, o anticosmismo que seria a marca registrada do gnosticismo posterior.[15]
O próximo passo lógico foi identificar o criador deste mundo também como intrinsicamente mau -- o autor do evangelho de João não foi tão longe no argumento. Se o mundo é mau, seu criador tem que ser mau ou, no mínimo, profundamente incompetente no serviço que ele prestou. A crítica à Lei Mosaica não é uma exceção no primeiro cristianismo, e o fato de alguns cristãos atuais ostentarem símbolos do judaísmo e do Estado de Israel vai diretamente contra o caráter dissidente desse movimento quando surgiu. Exemplo clássico aqui é do apóstolo Paulo em Gálatas 2:21, que argumenta que se a salvação viesse pela Lei, então Cristo morreu inutilmente -- Cristianismo foi a subversão completa dos princípios mais elementares do judaísmo. Os gnósticos estenderam essa crítica ao próprio legislador, ao deus do Antigo Testamento, que forneceu as leis às figuras mitológicas dos patriarcas hebreus. Cristo, portanto, não poderia ter vindo desse deus, mas do Princípio abstrato, até então desconhecido, mas intuído, um ser transcendente que não pode sequer ser nomeado. A estrutura do mito gnóstico só faz sentido no contexto de uma religião que preserva o Antigo Testamento como referencial mitológico, mas busca limitar seu valor para propor uma nova revelação.[16]
Deixa eu fazer um adendo aqui, porque os mitos gnósticos são interessantes por si só. São doutrinas bem diferentes de tudo que recebemos em ambientes de cultura cristã, que mostram bem a mescla entre o tipo de mitologia greco-romana em veiculação no Império Romano e sua mescla com mitologias de outras culturas.
A cosmologia Gnóstica também lida com criação, queda e salvação, mas parte de uma inversão do livro de Gênesis.
Mais do que uma narrativa blasfema, o mito gnóstico da criação era uma tentativa profunda de responder às perguntas fundamentais da condição humana que se mesclaram a séculos de debates teológicos da própria Igreja Católica; alguns gnósticos foram uma espécie de teólogos cristãos, de certa forma, e deixaram sua marca nas questões perenes dessa mundividência.
Exemplo de questionamento que fizeram: Por que o mundo é repleto de sofrimento? O que podemos fazer para transcender nossa miséria? A sensação de deslocamento que muitos sentimos é um sinal de que nosso verdadeiro lar não é este mundo material, nos nossos corpos físicos? O mito gnóstico oferece uma resposta complexa, articulando que a queda ocorreu não pela desobediência humana, mas por um erro no próprio plano divino, muito antes da criação do mundo tal como o conhecemos.
O Mito da Criação segundo o "Apócrifo de João"
A história começa não com a criação do mundo material, mas com a descrição do Deus verdadeiro, o Pai, um ser absolutamente transcendente, "ilimitável, insondável, imensurável, invisível, eterno, inefável, inominável".[17] Este Ser perfeito, envolto por águas espirituais luminosas, ao contemplar seu próprio reflexo, vê surgir Barbelo, a Mãe, também chamada de Pronoia (Previsão, o conceito platônico do qual falei no último episódio). Barbelo/Mãe/Pronoia é a contraparte feminina desse Deus e seu primeiro pensamento. Pois é, na ontologia platônica, refletir sobre uma coisa já impõe uma divisão: aquele que pensa, e a coisa que é pensada. Se no início só existe Deus, quando ele pensa em algo, o pensamento brota de sua essência, como uma bolha de diálogo em desenho animado, e já se constitui como um segundo ser. Quem leu Enéadas 6 de Plotino se deparou com essa ideia em várias instâncias; para os gnósticos, os vários Éons que compõem a realidade múltipla da esfera celestial são brotações, por assim dizer, da mente do Deus inefável.
A tal Barbelo pede e recebe do Pai os atributos de Presciência, Incorruptibilidade, Vida Eterna e Verdade.[18] Ela é boa também.
Onde há dois seres, tem que ter uma relação simbiótica paralela à relação sexual. Da união entre o Pai e Barbelo nasce o Filho, Autogenes, identificado como Cristo. Uma série de emanações divinas, os aeons, surge deste nascimento, formando o Pleroma (a "Plenitude"), a dimensão espiritual perfeita. Entre esses éons estão os Quatro Luminares -- Harmozel, Oroiael, Daveithai e Eleleth --, cada um associado a outros éons. O último éon a emanar foi Sofia (a Sabedoria), associada ao Luminal Eleleth. (Não me pergunte sobre essas entidades derivadas; a pequena parte dos escritos gnósticos que sobreviveram muitas vezes chegaram a nós como citações de seus detratores. De padres da igreja como São Ireneu que estavam caçando hereges da fé católica e davam exemplos, em longas citações, das doutrinas absurdas e blasfemas de camaradas como o autor do Apócrifo de João. São Ireneu reviraria no túmulo ao saber que eu e minha fonte fomos ler seus textos só para retirar citações gnósticas -- como se tratam de citações, muitas vezes alguns detalhes ficam mais explicados. Não achei nada muito substancial sobre o tal Eleleth, Daveithai etc.)
Mas achei sobre Sofia, e quero falar da Queda de Sofia e o Nascimento do Demiurgo
O ponto central dessa narrativa é o ato impulsivo de Sofia, paralelo a ideias do pecado original na doutrina judaica anterior. Desejando gerar um ser por sua própria conta, sem a participação de seu parceiro divino e sem a aprovação do Pai, Sofia dá à luz um filho deformado e ignorante: o demiurgo (um termo cunhado por Platão no Timeu para designar um ser divino, que significa "artesão" ou "construtor" em grego). Este ser é descrito como uma criatura monstruosa, com corpo de serpente e cabeça de leão, cujos olhos brilhavam como relâmpagos -- talvez sugerindo uma representação simbólica de que ele era assolado por paixões irracionais e descontroladas.[19]
Tomada pelo medo e pela vergonha, Sofia expulsa a criatura do Pleroma, envolvendo-a numa nuvem brilhante e colocando-a num trono. Ela o nomeia Yaldabaoth (possivelmente "Rei do Caos" como falei), mas também conhecido como Samael ("Deus Cego") ou Saklas ("O Tolo").[20] Daí vem o nome Samael, que eu sei que alguns de vocês conhecem. Sozinho e ignorante de suas origens, Yaldabaoth proclama com arrogância: "Eu sou Deus e não há outro Deus além de mim", ecoando o Deus do Gênesis. Ele então gera os 365 arcontes (governantes), seres demoníacos que o ajudarão a administrar a criação.[21] Que vão infernizar a sua e a minha vida. Os evangelhos canônicos, por exemplo, falam de um "governante (archon) deste mundo" (João 12:31, 14:30, 16:11) e afirmam que "o mundo inteiro jaz no Maligno" (1 João 5:19). Na interpretação gnóstica, aqui não se trata de governantes como políticos, mas demônios operando nos bastidores da vida humana.
A Criação do Mundo Material e da Humanidade
Yaldabaoth, possuindo dentro de si uma memória imperfeita do Pleroma, cria o mundo material como uma imitação distorcida do mundo espiritual. Ao avistar a imagem do Adão celestial (Pigeradamas), ele e os arcontes decidem criar um ser humano. (Há vários mitos de criação do homem no gnosticismo, vou explicar só um). Aqui, o plano dá errado: a criatura permanece inanimada no chão, como um golem, um monte de barro. Seres benevolentes do Pleroma instruem o demiurgo a soprar seu "espírito" no rosto de Adão. Yaldabaoth obedece, e ao fazê-lo, liberta involuntariamente o poder divino de Sofia, que entra em Adão, dando-lhe vida. Imediatamente, Adão se mostra mais sábio e espiritual que seus criadores. Ele e seus descendentes poderão acessar o plano divino (noético), não o deus estúpido e arrogante e seus arcontes. Por intermédio de Sophia, nós nos tornamos o cérebro da natureza e do mundo físico; nós somos a única fagulha de divindade que existe nessa realidade, e por isso o demiurgo e seus asseclas nos odeiam, e fazem de tudo para nos manter na ignorância.
Yaldabaoth, então, tenta recuperar o controle. Ele joga Adão no Paraíso, um lugar de ilusões e prazeres materiais, e tenta enganá-lo com a árvore do conhecimento do bem e do mal. A serpente do Éden, na verdade, é uma emanação de Sofia, que tenta guiar Adão e Eva para a verdadeira gnosis. O fruto proibido, portanto, não é o pecado, mas o primeiro passo para a libertação. Ao comerem o fruto, Adão e Eva ganham conhecimento de sua verdadeira natureza divina e se tornam conscientes da nudez de seus corpos materiais, símbolo de sua condição aprisionada. O demiurgo os expulsa do Paraíso, mas a centelha divina já está acesa na humanidade.
O resto da história bíblica é reinterpretado como uma batalha entre o demiurgo, tentando manter a humanidade na ignorância, e as emanações de Sofia, tentando despertá-la. Por exemplo, Caim e Abel representam duas naturezas humanas: a espiritual (Abel) e a material (Cain), que está sob o controle do demiurgo. A história de Noé é vista como uma tentativa do demiurgo de destruir a humanidade espiritual, mas Noé é salvo por Sofia. Os profetas hebreus são vistos como mensageiros do demiurgo, enquanto figuras como Sete (o terceiro filho de Adão e Eva) são portadores da centelha divina.
A Salvação através da Gnosis
O objetivo final do gnóstico é despertar para a centelha divina dentro de si, a gnosis, e assim escapar do ciclo de reencarnação imposto pelo demiurgo. A morte, nessa visão, é a libertação da alma do corpo material. Ao morrer, a alma enfrenta os arcontes, que tentam impedi-la de ascender ao Pleroma. Para superá-los, a alma deve recitar as "palavras de passe" (senhas) aprendidas durante a vida, que provam sua origem divina. Uma vez no Pleroma, a alma se reintegra ao divino, tornando-se um com o Pai.
O mito gnóstico, portanto, oferece uma resposta radical ao problema do mal: o sofrimento existe porque o mundo foi criado por uma entidade defeituosa e hostil. A salvação não vem da reconciliação com este mundo ou seu criador, mas da fuga dele através do autoconhecimento e da redescoberta da centelha divina interior.
Conclusão
O gnosticismo representa uma das mais fascinantes e radicais correntes do pensamento religioso antigo. Sua visão dualista, sua mitologia complexa e sua ênfase no conhecimento interior como caminho de salvação continuam a fascinar e inspirar até os dias de hoje. Embora tenha sido suprimido como heresia pelo cristianismo institucionalizado, seu legado persiste, oferecendo uma perspectiva única sobre as questões perenes da origem do mal, a natureza da divindade e o propósito da existência humana.
Referências
- McCOY, Daniel. Gnosticism Explained. Disponível em: https://gnosticismexplained.org/.
- Ibid.
- Ibid.
- Apócrifo de João, II,1 4,19-20.
- Ibid., II,1 10,9-10.
- SCHOLEM, Gershom. As Origens da Cabala. São Paulo: Perspectiva, 2001.
- Evangelho de Filipe, 75,1-2.
- Ibid., 67,26-27.
- McCOY, Daniel. Gnosticism Explained.
- Ibid.
- PLOTINO. Enéadas, II.9.
- Ver episódios anteriores desta série sobre filosofia antiga.
- EHRMAN, Bart D. Jesus: Apocalyptic Prophet of the New Millennium. Oxford University Press, 1999.
- Bíblia Sagrada, Evangelho de João.
- Ibid., Primeira Epístola de João.
- McCOY, Daniel. Gnosticism Explained.
- Apócrifo de João, II,1 4,19-20.
- Ibid., II,1 5,1-6.
- Ibid., II,1 10,9-10.
- Ibid., II,1 11,16-18.
- Ibid., II,1 11,30-35.