Neoplatonismo como Religião

Platonismo como religião: ἄγραφα δόγματα e o futuro da Academia

Publicado em 12 de maio de 2025

"Filosofar é aprender a morrer" -- Montaigne disse em uma ocasião, e os anos finais de Platão podem ser descritos como um balanço de uma vida que se iniciou como um projeto de desvendar o mundo e chegou a uma reconciliação inesperada entre ser humano e cosmos -- Platão aperfeiçoou e divulgou o método dialético, sem o qual, creem os platonistas, não se pode chegar à verdade última das coisas, e Platão também teve seus projetos políticos. Ele se meteu na política de Siracusa em certa altura e tentou racionalizar o aparato político e institucional daquela cidade. Este último projeto não deu certo, mas o primeiro projeto, de promover uma forma inovadora de fazer filosofia, deu certo até demais -- a ponto de estarmos falando sobre o homem até hoje. Uma vez que Platão faleceu em meados de 348 AEC, ele deixou uma legado duplo para seu sobrinho Speusippus: dar continuidade a sua doutrina, e manter a Academia, um complexo de prédios para fora das muralhas da cidade de Atenas, cujas ruínas você pode visitar até hoje. Eu quero falar inicialmente sobre o que foi essa Academia -- sobretudo porque ela é a primeira instituição de Ensino Superior na Grécia antiga --, e então sobre como os discípulos de Platão acabaram transformando sua doutrina em uma espécie de seita esotérica codificada, em uma religião propriamente dita.

Então, para resumir: a Academia surgiu por volta da época em que o filósofo, aos trinta anos de idade, adquiriu uma propriedade via herança. O lugar tinha um histórico de ter sido uma região sagrada, para além das muralhas da Atenas antiga, circundado por um antigo campo de batalhas que se revertera em um cemitério. Visualize-o como um campo aberto, com um pequeno complexo de templos, um ginásio, uma área extensa com túmulos e vegetação nativa. Ali Platão tinha direitos de uso limitados, já que se tratava de um solo sagrado: ninguém podia morar naquele canto, mas para fazer o que Platão queria: se reunir com seus pupilos e discutir filosofia, ele obteve permissão. As figuras que se reuniram por ali inicialmente, caso tenham escrito alguma coisa, se perderam na história: Teeteto de Sunium, Euxodo de Cnido, Arquitas de Tarento, Neoclides... os nomes não são interessantes para nós, embora eles se reunissem em pé de igualdade, não como discípulos de Platão ou Sócrates. A fortuna crítica vai dizer que Platão começou a levar a Academia a sério mesmo, e dedicar seu tempo integralmente à obra da promoção da filosofia e ensino de interessados no assunto, quando sua missão política na cidade de Siracusa fracassou pela primeira vez. Isso foi em meados de 387 AEC.

Não havia matrícula ou taxa de admissão. Jovens e velhos se misturavam, e há registros de mulheres frequentando o local regularmente: ouvimos de uma tal Axiotéia de Fliunte e Lastênia de Mantineia como membros da Academia.

A gente não sabe o que Platão ensinou ali -- as hipóteses são muitas, mas geralmente baseadas no que escreveu gente que passou a ver em Platão um competidor, como seu pupilo Aristóteles.

Na Física de Aristóteles, 209b, versos 13-15, há uma menção rápida de que "Platão usou esse conceito de forma diversa no que conhecemos como suas doutrinas não escritas". Como assim doutrinas não escritas? Pesquisando isso a fundo, um grupo de acadêmicos alemães do século 20 foi à loucura atrás de comprovação de que Platão disse muito mais do que a gente acha que ele disse. Essa é a Tübingen Platonschule, e seu argumento inicial foi: o que a extensa e influente filosofia que Platão nos relegou seria só uma primeira camada de ensinamentos; se eles achassem relatos de seus pupilos sobre doutrinas não-escritas, conseguiriam entender seu núcleo verdadeiro. Conseguiriam entender porque tudo o que os filósofos platônicos escreveram (de Espêusipo até Plotino) soava tão esotérico e misterioso. Porque o tão pouco sistemático Platão dos diálogos foi sucedido por filósofos dogmáticos, com doutrinas metafísicas às quais defenderam com unhas e dentes durante suas vidas.

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O que sabemos sobre as tais doutrinas não escritas de Platão representa um conjunto de teorias metafísicas também chamadas como "teoria dos princípios" (em alemão: Prinzipienlehre), que, portanto, envolvem dois princípios fundamentais dos quais todo um sistema de realidade deriva. Platão teria acreditado que certas partes de seus ensinamentos não eram adequadas para publicação aberta, já que poderia levar a mal-entendidos entre leitores não iniciados (aqui temos um conceito central da tradição esotérica, a figura do iniciado). E, finalmente chegamos num dos conceitos chaves desta série, as doutrinas não escritas são também referidas como "doutrinas esotéricas", denotando aqui simplesmente o fato de que se voltava a um círculo interno de estudantes da escola de Platão (em grego, "esotérico" significa literalmente "dentro dos muros"). E, se você acompanhou os episódios sobre Plotino, alerto para não confundir as coisas aqui: a primeira doutrina dos dois princípios: elenca o Uno (τὸ Ἕν) como o princípio da unidade que define e determina todas as coisas. Em segundo lugar vem a Díade Indefinida (ἡ ἀόριστος δυάς): o princípio da "indeterminação" e "ilimitação".

O Uno é o princípio produtivo, responsável pela forma das coisas que existem. A Díade Indefinida, por sua vez, serve como substrato para a atividade do Uno, sendo a fonte da multiplicidade, ambiguidade e imperfeição. Toda a realidade, incluindo o mundo das Formas e o mundo sensível, deriva da interação entre esses dois princípios. Quanto mais a Díade Indefinida influencia algo, mais caótico e menos real ele é. (Nessa doutrina inicial, tudo tem um gérmen de determinação em si (que faz você não desmanchar no chão e escorrer pelo ralo, manter sua personalidade e identidade +- intacta, etc), mas também contém um gérmen de indeterminação, de caos, de inconstância: é o que nos faz envelhecer, morrer, virar outra coisa após a falência de nossos órgãos. Novamente, o mundo físico é o palco dessa mutabilidade inerente das coisas: se você quiser achar os conceitos em suas formas imutáveis, você o encontrará na esfera noética, no mundo das ideias.

O interessante é que esse princípio da Díade e do Uno foi usado por um tempo para pensar tudo: não só uma ontologia fundamental, mas também a lógica, a política, a esfera cosmológica (o movimento dos astros), e até a psicologia humana (a díade é o que faz você mudar de humor a todo momento, tomar decisões precipitadas e autodestrutivas; o Uno é o princípio da razão e da temperança).

Platônicos discordaram nos detalhes dessa metafísica; alguns a levaram para uma interpretação monista (segunda a qual o Uno é superior e precisa da Díade para se afirmar como tal, como o Cristianismo o fez mais tarde); outros vão promover uma espécie de filosofia do yin yang; de uma realidade regida por um princípio duplo, uma guerra eterna e irresoluta entre um princípio da permanência/paz/unidade/razão vs. um princípio da mutabilidade/caos/multiplicação/pulsão.

Após essa breve introdução, dá para a gente partir para o tema que importa: porque é possível falar de um platonismo, como uma corrente filosófica coerente, apesar de ter gerado duas filosofias tão diferentes.

Quase tudo o que eu vou falar agora se pauta no estudo que fiz da obra monumental de Heinrich Dörrie, Der Platonismus in der Antike. Ele passou 40 anos de sua vida traduzindo e pesquisando tudo o que se pôde achar dos Platonikoí, e produziu uma obra de 4592 páginas -- coisa de maluco mesmo. Eu não cheguei nem perto de acabar esse livro porque tenho mais o que fazer, mas segue-se o que Dörrie escreve nos seus três capítulos iniciais sobre o Platonismo.

Platonismo não foi uma simples escola de pensamento, mas um sistema de mundo complexo e coeso, que une em si filosofia, religião e ensinamentos que hoje classificaríamos como ocultistas. Este sistema, que seus adeptos chamavam de philosophía e a si mesmos de Platonikoí, constituía uma visão de mundo totalizante, fechada e autossuficiente.

Em suas origens, e sobretudo na reinstauração da Academia com Antiochos de Askalon no século I AEC (depois de um breve período em que esteve fechada), o Platonismo se consolidou como uma seita filosófica de acesso restrito. Seu objetivo era transmitir uma doutrina sagrada e imutável, onde qualquer mínima alteração dos textos e ensinamentos pregressos seriam consideradas blasfemas. A linguagem dos platônicos era permeada por um denso tecido de reminiscências de Platão e Sócrates --- eles se comunicavam via repetição de citações de seus diálogos, de suas metáforas, de suas parábolas --- que acabaram funcionando como símbolos: sinais de reconhecimento que garantiam o entendimento mútuo entre os iniciados nessa "arte", enquanto deixavam os ignorantes do lado de fora, sem entender sobre o que eles estavam falando.

A questão central é que os platônicos antigos não se limitavam a interpretar Platão; eles professavam uma cosmovisão de origens vagas das doutrinas não-escritas. Como elas não tinham sido escritas, e passavam de mestre para pupilo, no decorrer dos séculos, é claro, ela virou um enorme telefone sem fio: foram absorvendo crenças de diferentes épocas, influências de culturas externas, ideias de seus próprios líderes. Mas ai de você se questionasse seu valor: o Platonismo era, para todos os fins, uma "visão de mundo integral".

Foram ensinados conceitos como o de pronóia (πρόνοια; providência),

Pronóia é a força racional, divina e benevolente que emana do princípio máximo (o Uno/Bem) e permeia toda a realidade, garantindo ordem, justiça e propósito ao cosmos. Ela é uma função operativa do princípio divino que carregamos, um poder ativo de organização da realidade. Sabe quando você tem uma noção quase intuída de certa coisa, daí se depara com uma teoria perfeitamente adequada a suas impressões escrita, explicada por alguém que viveu há séculos? Essa é uma impressão correta, e ela existe em todos os níveis de matéria, segundo os neoplatônicos. Esse princípio começa em um nível cosmológico, e é o que garante o devido movimento dos astros e ordenação dos objetos espaciais. Pois é, essa é a cosmologia de um mundo muito antes da teorização da gravitação; os platônicos já no século 2 AEC defendiam que o universo só não é um caos por causa de um princípio organizador, pronóia; por isso o universo é um κόσμος (ou seja, "ordem", "organização" e "beleza feminina"; a palavra cosmético vem daí). A pronóia pode ser pensada como o agente divino que institui e mantém essa ordem. Dörrie explica que a pronóia "não apenas regula todos os processos no céu e na terra", mas é a expressão de uma racionalidade divina imanente ao mundo.

Sua função mais crucial, do ponto de vista religioso e ético, é a de gerir o ciclo de reencarnação das almas. Aqui a coisa fica interessante. Reencarnação já era ensinada em círculos pitagóricos muito antes de Platão, e também pelo hinduísmo lá na distante Índia; em diálogos como Fedro Platão sugere crer nessa teoria como derivação de sua convicção de um princípio organizador por trás de tudo. Essa pronóia garantiria que a lei cósmica de causa e efeito fosse cumprida também num sentido moral: assim como toda ação tem sua reação no mundo físico (pense quando você chuta uma bola, essa bola é projetada para a frente por força das leis da cinética), e é a pronóia que assegura que cada alma receba, na sua próxima encarnação, um corpo e uma condição de vida correspondentes aos seus méritos e erros anteriores. No campo da moral, Adastreia é o conceito equivalente ao conceito mais conhecido de karma. Uma vida virtuosa e dedicada à filosofia pode levar a uma encarnação mais favorável (por exemplo, como um homem livre numa pólis grega), enquanto uma vida viciosa pode resultar em uma encarnação em um corpo de um animal, de uma pessoa que só vai se lascar na vida. Essas não são punições arbitrárias, mas consequências lógicas e necessárias para os platonistas. O objetivo final é permitir que a alma se liberte completamente do ciclo de renascimentos (daqui vem o conceito de soteria -- salvação, do qual os cristãos no século 1 e 2 EC foram beber. A salvação é muito mal explicada na própria doutrina judaica, você sabe disso).

Essa coisa da pronóia é só um exemplo para exemplificar o salto que os platônicos deram com um princípio inicialmente filosófico, levando-o a implicações simultaneamente religiosas e científicas. Duvidar de um aspecto ou outro era blasfêmia justamente porque, para o platonismo, todas as esferas da realidade têm que se pautar em um princípio único -- em uma única coerência. Assim, crer em reencarnação e nas leis de estabilidade da órbita dos astros consistuíam artigos de fé inquestionáveis. Áreas como a vida após a morte hoje estão fora do alcance da discussão racional da filosofia, mas na compreensão do velho platonismo, esse tema também era parte integrante da filosofia.

No século III EC, esse acúmulo de doutrinas e conceitos derivados de um platonismo exotérico (o platonismo dos diálogos) e, supostamente, de um platonismo esotério (as doutrinas não escritas), se tornou a filosofia grega por excelência, absorvendo e fundindo várias escolas que vieram no caminho num só sistema: estoicismo, pitagoreanismo e peripatetismo. Tudo virou uma unidade universalizante da sabedoria grega. Essa era a religião revelada dos gregos desde tempos imemoriais, e durou até o crepúsculo do império romano.

Quando eu falo de religião platônica, um detalhe: a base doutrinal do Platonismo, seu credo, nunca foi rigidamente formulada em um único dogma central. Em vez disso, é melhor entende-la como uma teia de convicções, como a doutrina de dois princípios (Uno, Díade), o dualismo entre a existência física e o mundo das Ideias, a convicção da eternidade do mundo, a doutrina da alma e a definição do propósito ético humano como parte da natureza do cosmos. A filosofia, neste contexto antigo, abrangia tudo: matemática, ciências naturais, ética e muito do que hoje consideramos saberes parafilosóficos, paranormais. Não havia separação entre fé e intelecto; o racionalmente válido era necessariamente teologicamente válido -- e tenho a impressão que não se entende algumas lacunas deixadas por Santo Agostinho e demais padres da igreja se quisermos entendê-los fora desse ambiente discursivo.

Mais um fator: os platônicos na era helenística começaram a acentuar a ideia de que o lógos revela ao grande mestre Platão, lá atrás, já se havia revelado completamente aos sábios antigos como Orfeu, Homero e os Sete Sábios fundadores da cultura grega. Homens que viveram 6 séculos antes de Platão; Orfeu é uma figura mitológica, é claro. Depois, o persa Zoroastro, deuses babilônicos e o egípcio Hermes foram aceitos como profetas válidos, apesar de estrangeiros, da verdadeira doutrina -- essa é uma ideia que a teosofia resgatou no século XX, mas vem lá de trás. A tarefa do filósofo (ou do estudante do oculto) era recuperar, iluminar e reviver esse conhecimento ameaçado pelas distrações do mundo moderno e materialista do Império Romano. Isto levou a três campos principais de investigação que hoje a gente reconhece como principais temas do primeiro platonismo, do médio platonismo e do neoplatonismo (mais tarde falo dessa divisão). Os temas são os seguintes:

  1. A interpretação filosófica dos poetas antigos e dos Oracula Chaldaica, cujas palavras eram tratadas como oráculos. Aqui dou destaque para o médio platonismo, e para seu representante mais célebre, Numênio de Apameia (séc. II EC), o caso pouco comum de um representante judeu da doutrina platônica, escrevendo em grego. Dele é a frase "O que é Platão, senão um Moisés que fala grego?" (τί γάρ ἐστι Πλάτων ἢ Μωσῆς ἀττικίζων;). esta frase sintetiza a crença na unidade da verdade noumênica e sua revelação para diversos povos, em diversas épocas. O povo hebreu também teria tido sua revelação, e ela coincidia com Platão. Dá uma olhada em uma obra chamada Sobre o Bem em que ele faz exegese da Torá judaica para provar essa tese que foi formadora da teologia cristã mais para frente.
Segundo tema comum aos platonistas:
  1. Há uma porção de exegese dos escritos de Platão; de fato, aproxidamente metade de tudo o que a gente tem de textos da Grécia antiga são textos de Platão e Aristóteles, ou comentários deles, anotações de aulas, crítica. O diferencial dos textos do médio platonismo é que ele não tentavam somente encontrar um significado filológico objetivo nesses textos, mas para desvendar o lógos divino que ele, falando por theía manía (êxtase divino), teria codificado em suas palavras. Essa gente não deve ter prestado atenção em o que Sócrates fala em Íon sobre a inspiração divina, mas o resultado é um médio platonismo profundamente místico.
  2. Terceiro tema: A investigação filosófica de ritos, cultos e mistérios antigos, especialmente de origens não-gregas (bárbaras), baseada no axioma de que esses povos haviam preservado verdades salvíficas que os gregos teriam perdido. Caso clássico dessa vertente panreligiosa é Jâmblico de Cálcis, com Sobre os mistérios egípcios. Lá ele se propõe a decifrar religiões de mistérios egípcias, caldeias e sírias de seu ponto de vista grego. Só restou um fragmento pequeno dela, mas isso está traduzido para o português, pelo David Verzola Felts, e você acha na faixa na internet. Link na descrição do episódio: https://repositorio.unesp.br/server/api/core/bitstreams/352b880f-293a-4fe2-bfc4-71822548310c/content

Nesta busca tripla por temas diversos, fica a impressão de que as coisas racionais e éticas, assim como os saberes políticos, já tinham sido decifrados, e ninguém com a cabeça no lugar ousaria corrigir Platão. Cabia agora escrever com clareza sobre outros temas esotéricos da doutrina: cabia decifrar os mistérios do cosmos e dos deuses.

O cerne ético da doutrina socrática ficou, mas foi de certa forma amplificado até chegarmos a Plotino. Ele consistia em um processo em que o filósofo "conhece a si mesmo", mas voltando-se a práticas que o aproximassem do Lógos universal, fortalecendo assim seu lógos interior. Para purificar o pensamento e conceber o Noús em sua pureza, buscaram-se três vias: a da purificação moral, da purificação da razão, e uma via mystica (de união com o cosmos. Seja lá o que isso seja -- nem Plotino deixou muito claro o que quis dizer com isso; ela soa como uma espécie de meditação transcendental estendida).

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A gente se aproxima do desfecho, e preciso dar alguns nomes de filósofos, esboçar uma divisão cronológica das fases da Academia de Platão.

A Antiga Academia foi sucedida por uma linhagem de dirigentes imediatos após Platão: Espeusipo (347--339 ACE), Xenócrates (339--314 AEC), Polemon (314--269 AEC) e Crates (c. 269--266 AEC). Nela destacou-se o jovem Aristóteles e rompeu com o platonismo para formar sua própria escola peripatética, então Heráclides, Eudoxo, Filipe de Ópus e Crantor.

Por volta de 266 AEC, a Média e Terceira Academia (não confundir com Médio Platonismo) teve início com Arcesilau assumindo a posição de líder. Sob sua liderança (c. 266--241 AEC), a Academia enfatizou fortemente o ceticismo acadêmico, pondo em xeque a possibilidade de conhecimento absoluto. Se existe a esfera noética, nós não somos capazes de atingi-la -- essa era a ideia inusitada a sair da boca de um platonista. Interessava mais para eles os chamados diálogos aporéticos (aqueles diálogos que não dão em lugar nenhum, que Sócrates e seus interlocutores não chegam a conclusões de fato), e diálogos sugestivamente propositivos como Timeu e República foram deixados de lado. Essa fase da academia durou até Fílon de Larissa ("o último chefe inconteste da Academia", c. 110--84 a.C.).

Por volta de 90 a.C., o aluno de Fílon, Antíoco de Ascalão, começou a ensinar sua própria versão rival do platonismo, rejeitando o ceticismo e advogando o estoicismo e formulação de uma doutrina geral sobre a qual falei acima, iniciando assim uma nova fase conhecida como Médio Platonismo. Ela é a que mais nos interessa. Aqui propõe-se um sistema dogmático de filosofia platônica, que redundará em uma espécie de religião.

Eudoro de Alexandria é uma figura central aqui, que reafirma a unidade de toda a filosofia em torno da figura de Platão, mas coloca a origem dessas ideias um pouco antes, em Pitágoras. O matemático místico Pitágoras seria o início da tradição; Platão é só uma estação a partir de sua fonte original. Isso altera tudo, já que Eudoro localizará o Timeu de Platão como seu texto central -- esse é o texto com temas que o aproxima do pitagoreanismo, ao menos com suas preocupações --, e foi dali em diante interpretado ora como manual, ora como revelação codificada. Na Ideia Média, por séculos e mais séculos, esse foi o único texto de Platão a circular na Europa. A importância disso não pode ser minimizada.

Dele, extraiu-se a teologia platônica baseada na tríade de causas: Demiurgo, Modelo e Matéria. As variações e tensões em torno desta doutrina---como a de Plutarco, que introduz uma Alma mediadora---geraram conflitos intensos e amplas especulações sobre a alma. Embora muitas vezes essas especulações descendessem à superstição (crença em demônios, astrologia), sua motivação era profunda: a busca pela causa primeira de toda a causalidade, transcendendo a visão estóica de uma causalidade intramundana e material. Esse lugar da legalidade universal foi identificado como a Alma do Mundo, e o instrumento para desvendá-lo é o lógos.

É tarefa da Alma do Mundo implantar sentido e ordem (nous e kosmos) em todos os domínios. Consequentemente, a razão individual, aparentada e idêntica ao Noús da Alma do Mundo, tem a missão de refazer e compreender a criação cósmica. Nós somos a mente da Natureza, do Mundo; essa foi uma ideia que se estendeu até Schelling no século 19, e arrisco dizer que perfaz movimentos como a Nova Era, algumas vertentes do movimento ecológico.

Neste aspecto, Dörrie destaca a mediação crucial do pensamento de Poseidonios para o Platonismo. Não vai dar tempo de falar com detalhes de nenhum desses nomes; recomendarei a leitura do John Dillon se você ler inglês, e Heinrich Dörrie se você lê alemão.

No Médio Platonismo a doutrina vira religião. Sua força residia em oferecer a certeza de que a prónoia (providência) age incessantemente e com justiça incorruptível para o bem humano. Por isso, ela não precisou de igrejas, rituais ou sacramentos; tentar influenciar a providência com atos sacrais era considerado inútil e blasfemo. Na guerra do século 3 entre neoplatonistas e cristãos, essa era a grande objeção: Cristianismo era só mais um shopping center de salvação fácil, conquistada por qualquer bêbado de aldeia sem rigor moral. E platonistas gregos desprezavam esse tipo de autoindulgência nos romanos e nos povos colonizados ao redor.

O destino final da Academia foi selado pela guerra. Quando a Primeira Guerra Mitridática começou em 88 a.C., Fílon de Larissa deixou Atenas e refugiou-se em Roma, onde parece ter permanecido até sua morte. Em 86 a.C., Lúcio Cornélio Sula sitiou e conquistou Atenas, causando grande destruição. Foi durante este cerco que ele devastou a Academia, pois "pôs as mãos nos bosques sagrados e arrasou a Academia, que era o subúrbio mais arborizado da cidade, bem como o Liceu."

A destruição da Academia parece ter sido tão severa que tornou impossível sua reconstrução e reabertura. Quando Antíoco retornou a Atenas por volta de 84 a.C., retomou seus ensinamentos, mas não no local original da Academia. Cícero, que estudou com ele em 79/8 a.C., refere-se a Antíoco ensinando em um ginásio chamado Ptolomeu. O próprio Cícero descreve uma visita ao local da Academia uma tarde, que estava "calmo e deserto naquela hora do dia", um testemunho melancólico do fim da instituição física que havia abrigado um dos centros de pensamento mais influentes do mundo antigo. O fecho da Academia marcou o fim de uma era, mas o seu legado intelectual, transmitido através do Platonismo Médio, continuaria a ecoar e a preparar o terreno para o surgimento do Neoplatonismo de Plotino. E esse foi o último suspiro do movimento.

History of Philosophy without any gaps. Episode 78 - Middle Men: the Platonic Revival. 29/April/2012. https://historyofphilosophy.net/middle-platonists

Vogt, Katja, "Ancient Skepticism", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2022 Edition), Edward N. Zalta & Uri Nodelman (eds.), URL = https://plato.stanford.edu/archives/win2022/entries/skepticism-ancient/.

The Secret History of Western Esotericism. Episode 62: John Dillon on Middle Platonism. 19/April/2019. https://shwep.net/podcast/john-dillon-on-middle-platonism/