Escrito em 04/08/2025
Um modo de entender Plotino é como um filósofo da mente surpreendentemente avançado para o século III; ele compartilha com nossa época a concepção de uma mente dividida entre subconsciente e consciência, entre um estado de vigília e um estado de repressão.
A ideia é a seguinte: "a mente [humana] vivencia seus estados mentais da mesma forma que um espectador que assiste a atores entrando e saindo de um palco. [...] No caso da mente, existe um Eu que observa seus pensamentos em um tipo de teatro interno. Pensamentos que chegam ao palco são conscientes, e pensamentos que não chegam no palco são inconscientes. Os aspectos centrais deste modelo é que o teatro interno consiste na própria experiência subjetiva do indivíduo, e que temos uma autoridade epistêmica única sobre os conteúdos de nossa experiência subjetiva." (Danny Munoz Hut. Plotinus on Consciousness. Cambridge UP, 2018, p. 2) Usarei estes termos continuamente: a mente como um "teatro interno" para expressar essa concepção de consciência geralmente atribuída à filosofia cartesiana. Ela já começa com Plotino.
A diferença de Plotino para perspectivas contemporâneas das neurociências é que ele sustenta uma teoria dualista da consciência. Ao menos alguns aspectos da consciência escapam do reino material. E, lendo trechos diversos das Enéadas, observamos Plotino se convencer de que essa parece uma conclusão inevitável; o próprio fato de compartilharmos uma inteligência e verdades sobre as coisas do mundo o impede de afirmar que a consciência humana é restrita a um cérebro individual que interpreta o mundo natural mais ou menos como todos os outros. Há algo mais profundo, para além das nervuras da realidade, que contém os sentidos das coisas e estabelece a harmonia e coerência do mundo como o conhecemos. E essa segunda dimensão da realidade, digamos, tem que ser imaterial. Ela tem que estar para além do tempo, inclusive. Nós, no Brasil de 2025, temos acesso a noções básicas da realidade e dos fenômenos que a compõe — pense nos mais abstratos possíveis —, e podemos compartilhar o interesse que Platão, por exemplo, teve há 25 séculos no conceito de Justiça. Somos capazes de ler um diálogo platônico e participar, passo a passo, do processo de convencimento que os interlocutores de Sócrates vivenciaram através de sua exposição de argumentos. E isso ocorre porque, mesmo que nossas consciências sejam "teatros internos" únicos, isolados, com níveis de maturidade muito distintos dos outros indivíduos, ela nos sintoniza à mesma fonte de inteligibilidade à qual Platão, num passado remoto, teve acesso. É uma só fonte para toda a humanidade; e os argumentos modernos podem vir com toda sorte de objeção contra Plotino — aqui podemos ser razoáveis e não querer exigir uma visão refinada de química cerebral ou filosofia analítica de uma pessoa que viveu no século III EC.
Como compartilhamos verdades comuns? — Este é um dos pontos de partida da filosofia plotiniana, e uma porta de acesso privilegiada para entrarmos no labirinto de referências e reflexões que é as Enéadas, o conjunto de seus ensaios e anotações de aulas que começou a fazer por volta dos 50 anos de idade. Ele vai nos levar a uma divisão da realidade em camadas fundamentais (ou hipóstases), como veremos: o reino material, onde nossos corpos e mentes limitadas habitam, conta como o nível mais inferior dessa realidade, e o mais distante da verdade das coisas. Acima do mundo material, reside o Nôus (νοῦς) — a Consciência Universal, eterna e ilimitada, onde tempo, espaço e subjetividade se dissolvem. Nele, todas as coisas existem em plenitude absoluta: cada ser, cada destino, cada verdade se manifesta em sua forma mais pura e transparente, sem os pontos cegos da existência terrena.
Nesse reino de luz inteligível, sua essência não é um fragmento, mas uma chama perfeita que expressa integralmente quem você é. Nela residem seu propósito, seu potencial e sua natureza divina. No entanto, ao descer para o mundo material, essa chama é aprisionada ao corpo, como se fosse envolta por uma esfera opaca e imperfeita. Através de frestas estreitas, lampejos dessa verdade interior ocasionalmente irrompem, como se vazassem para fora — eles só revelam vislumbres do seu ser verdadeiro.
O Nôus é, assim, mais plenamente realidade do que a matéria. Nele todos os fenômenos se desvelam em clareza absoluta. A matéria só está incompletamente em contato com a verdade das coisas, porque verdade é conceito: é entendimento, e o mundo material é o oposto disso. Para o mal informado, ele se revela como uma complexidade caótica e incompreensíveis de fenômenos. Ele é o reino da aleatoriedade, da incoerência.
Por isso Plotino vai propor a ideia contra-intuitiva de nossa existência corpórea como apenas um eco distorcido dessa harmonia cósmica; uma ressonância parcial e velada da perfeição que nos origina.
Nossa mente, por sua vez, é o que há no meio disso: ela é abstrata, mas aprisionada em nossos cérebros físicos, limitada pelo alcance de nossos passos e do acesso que temos aos espaços do mundo físico.
Há ainda um outro reino superior, que é a unidade de onde o Nôus e sua multiplicidade tem que ter derivado, diz Plotino, e que é ainda mais próximo de uma visão mística da existência. Esse é to hen (τό ἕν), o Uno, do qual a gente consegue deduzir poquíssimas coisas, de tão complexo e incomensurável para nossas mentes que é.
É um quadro complexo da existência, para dizer o mínimo. É metafísica avançada, e há quem diga que Plotino seja uma versão lisérgica de Platão, um intérprete esotérico de um filósofo de metodologia rigorosamente racionalista. Plotino, como adiantamos, é filho de sua época, o Império Romano do século 3 — e a sua é uma época profunda interessada na dimensão mística, nos mistérios insondáveis da existência. Mas o mais intrigante de ler suas ideias é constatar que, naquela altura da história da filosofia em língua grega, ele se encarava como um intérprete fiel das ideias de Platão. Ele sequer reivindicava originalidade em suas ideias. Platão era o mestre absoluto dos filósofos, que o papel de seu seguidor era interpretar, no linguajar e cultura de sua época, suas ideias de forma mais adequada — os contemporâneos helenísticos de Plotino viam nele o melhor intérprete de Platão. Ele vivia como professor de algumas dezenas de indivíduos, tal qual um guru de um agrupamento religioso, com quem conviviam dia a dia a aprendiam a sabedoria herdada dos antigos. E, não fosse por um aluno seu, Porfírio, Plotino sequer teria escrito seus ensinamentos. Porfírio diz que insistiu com seu mestre para que registrasse suas reflexões compartilhadas na escola de filosofia com seus pupilos, e foi o que Plotino fez por volta de seu 50º ano de vida. Essas reflexões não seguem o formato de um livro convencional — estão mais próximas fluxos de consciência sobre um ou outro problema filosófico que se amontoam em 54 ensaios, em seis grandes partes, ἐννεάς, e que hoje chamamos de Enéadas. Foi Porfírio, esse pupilo de Plotino, quem organizou o texto, e há quem diga que ele só tornou as ideias de seu tutor mais confusas ao organizá-las do jeito que as organizou. Não entrarei nesse mérito. Sem Porfírio não teríamos as ideias de um dos grandes nomes da filosofia teológica do século III, e a história da religiosidade ocidental seria muito diferente.
As Enéadas, assim, podem ser lidas por partes; a parte I, 8 tratam do problema do Mal: como o mal existe no mundo físico, mas jamais pode ser considerado parte da totalidade da existência, o to hen, e sequer do mundo de inteligibilidade compartilhar, o Nôus. Em seguida ele fala do conceito do belo: a beleza de uma mulher, ou de um filhotinho bebendo leite, ou de uma paisagem natural intocada, é uma intuição correta que mesmo as mentes menos refinadas têm da harmonia que perfaz o mundo em sua dimensão mais profunda; por mais que o mundo físico que conhecemos seja horroroso e cheio de sofrimento e desgraça, às vezes, a existência de uma intuição universal do belo e harmônico aponta para a verdade última da vida: as coisas partem de uma harmonia imediata da, que você não precisa treinar para considerar harmônica, mas só precisa abrir seus olhos e constatar: "isso é belo, isso me agrada". A arte é a forma como decoramos espaços; a música é a forma como decoramos o tempo de nossas vidas — muito do vínculo existencial que temos com a artes que nos fascinam vem dessa intuição primordial. O belo é a ponte para uma constatação menos sensorial, mais intelectual, do que o estudo filosófico irá te levar conforme você empreende na mesma tarefa que o Sócrates platônico nos ensinou a buscar. A filosofia, o amor pelo saber do que não entendemos ainda, mas potencialmente podemos conhecer se usarmos nossas cabeças.
A esta altura, eu resumi somente dois ensaios de Plotino, os trechos de Enéadas I,8.3-5 e V, 8.1: mas já deve estar claro: essas ideias são extremamente sedutoras tanto para pessoas em busca de conhecimento filosófico, quanto de conhecimento esotérico. Elas pressupõe, convincentemente, que somos corpos e mentes incompletos, imaturos, que têm, contudo, algum grau de acesso à beleza e a uma contemplação da verdade que estaria lá para nós desvendarmos e envolvermos em nosso ser: seja uma revelação mística dos mistérios da mente e universo, seja o prazer extático do qual o sexo e a saciação dos sentidos é só uma parte mínima. Plotino plantou a semente do êxtase religioso que floresceu na Idade Média — de Santo Agostinho a Hildegarda von Bingen — e ecoou até nos místicos românticos e na teosofia. Sua ideia de uma realidade transcendente não morreu; só tomou novas roupagens. Ele articulou a busca por uma verdade mística que encontramos nos místicos medievais Jacob von Böhme e Paracelsus; nos românticos Novalis e William Blake, na teosofia de Helena Blavatsky.
De qualquer forma, para a filosofia acadêmica ensinada hoje, ele soa extravagantemente metafísico. Essa coisa de dividir a existência em pelo menos 4 camada paralelas e mutuamente dependentes de realidade (física, mental, eidética, mística) soa para muita gente como uma invenção desnecessária de reinos da imaginação, que só confunde as coisas que hoje nós entendemos como bioquímica cerebral, efeitos da comunicação linguística e herança genética — esta é a visão materialista da mente humana e sua ligação com o real. Nós somos máquinas biológicas complexas, com cérebros altamente refinados que servem de filtro para uma realidade sem sentido inato: a confluência de formas de ver, sentir cheiros, interpretar cores, reagir hormonal e instintivamente aos fenômenos nos faz compartilhar reações comuns com outros seres humanos, mas não com águias, com tatus ou lagartas; para além das afecções que constituem uma natureza humana básica, no fundo estamos perdidos em nosso teatro interno. Plotino é um sonhador em imaginar que há algo além disso.
Bom, caras e caros leitores, não tenho interesse em filosofia acadêmica ou nisso que virou o senso comum da nossa época. Essa é uma visão que a humanidade compartilha há menos de 100 anos e tudo me leva a crer que ela é temporal, é um efeito necessário de nosso processo e histórico, mas que logo vai se tornar defasada, já que tudo se torna defasado em um momento ou em outro. De forma alguma essa visão 100% materialista da mente humana como um conjunto de epifenômenos da nossa química cerebral dá conta de explicar mistérios de nosso teatro interno; ela nem é uma interpretação que satisfaz nossos impulsos, nem é uma proposição conclusiva da qual uma cultura da subjetividade tenha surgido. Pelo contrário, Nossa cultura da subjetividade, muitas vezes reduzida a algoritmos e autoajuda superficial, está adoecida — como se fôssemos espectadores passivos de nosso próprio teatro interno. Esse teatro se tornou um hospício. Não precisa que eu explique isso para ninguém, esta é uma constatação que qualquer pessoa saída da infância consegue chegar sem problemas. Nós somos um estágio adoentado da humanidade, dependente de tecnologia para pensarmos como um viciado é dependente da seringa.
Estudar história do pensamento e da inteligência humana vai te mostrar que houve outras culturas do ser — do que significa ser um indivíduo —, e que, mesmo que elas nunca resolveram todas as inquietações humanas, elas ao menos deram respostas mais interessantes para dilemas existenciais. No século III, Plotino retomou a filosofia de Platão (século IV AEC) e a desenvolveu em uma teoria da existência superior. Eu vou propor que talvez você encontre algo semelhante em Plotino. Mais uma vez: eu não sou coach, e não estou aqui para te enganar: não será um texto de internet escrito por alguém que você nem conhece que vai resolver suas inquietações existenciais. Não tenho remédio para ninguém e para nenhum mal, só uma convicção imensa de que falta a nossa época uma cultura de subjetividade minimamente razoável — antes, é como se as pessoas se tornaram tão destreinadas, filosoficamente falando, que passaram a recorrer em fórmulas inúteis e enganação deliberada para resolver seus problemas. Falta transcendência à religiosidade atual, seja lá quão superior que você achar seu instrutor de yoga, coach quântico ou pastor evangélico. Vivemos uma crise semelhante à crise de convicções do Império Romano — as pessoas vão às compras no grande
Plotino destaca a consciência ao dividi-la em camadas, revelando uma arquitetura invisível por trás do pensamento. Ela mostra que para entender nosso estado mental, é preciso compreender mais do que um substrato físico que o compõe (como correlação neuronal) ou mecanismos cognitivos (que a maioria das pessoas vai afirmar sem de fato entender seu funcionamento detalhado). Antes, ele dirá que é preciso compreender toda a arquitetura cognitiva da mente em níveis de complexidade: desde a mente individual e suas pequenas operações animalescas, que dividimos com outros animais, até a totalidade abstrata das concepções globais e unificadas de toda a humanidade, em todas as épocas. O que a gente atribuiria à mente de um deus único, criador de todos os deuses, se é que isso é possível. Isso é o que eu vou chamar de pan-psiquismo — o ato de imaginar uma mente do mundo todo, mesmo que a nível de especulação, para entendermos nosso papel individual nela. Não se trata de um teatro interno. Se trata de uma janela para uma ampla arena dos sentidos compartilhados do cosmos.
Para Plotino, filosofia não era uma disciplina acadêmica; ela é a tentativa do ser humano se reconciliar com o inevitável, com o incomensurável. E que se conhece ao fazê-lo — somente enquanto está tentando fazê-lo, e aqui está sua herança platônica, que também entendeu o conhece a ti mesmo, sem ilusões, sem idealismo — simplesmente conhece a ti mesmo, e só a partir disso você vai conhecer algo sobre o mundo que te rodeia.