O Evangelho de Judas

e o papel do traidor na tradição cristã primitiva

Escrito por F.V.Silva em 29/09/2025

O Evangelho de Judas foi um texto gnóstico da tradição sethiana que se tornou amplamente conhecido apenas em 2006. Seus manuscritos foram escavados nos anos 1970 e passados para frente por um vendedor de antiguidades, e ele passou um tempo no cofre de um ricaço em Nova York que nem sabia do seu valor e me fez o favor de deixar o texto deteriorando por décadas. Então, não temos o texto completo do Evangelho que se propõe como uma simulação dos ensinamentos de Judas Iscariotes; há lacunas nos manuscritos, mas os trechos completos já o bastante para revelar uma dimensão inesperada da doutrina cristã em sua fase inicial.

Esse texto traz uma reinterpretação radical de uma das figuras mais desprezadas da tradição, o traidor de Cristo, Judas Iscariotes, e inverte sua posição com a dos doze discípulos: lê-lo nos permite visualizar um quadro privilegiado dos debates eclesiológicos cruciais para o século II, quando uma doutrina católica e universal estava em vias de se consolidar.

O texto

O texto do Evangelho de Judas começa como um relato secreto das revelações de Jesus a Judas durante oito dias, antecedendo a crucificação. A narrativa começa abruptamente com uma crítica direta de Jesus aos doze discípulos, que encontrou reunidos em oração eucarística semelhante àquela da última ceia: estão todos reunidos em volta de Cristo e realizando seus rituais e Jesus começa a gargalhar. Este, aliás, é um Evangelho que o retrata rindo a todo momento: ele não deixa de ser retratado como uma figura de sabedoria, mas encara a estupidez alheia com uma mescla de pena e sarcasmo. Os apóstolos ficam estarrecidos com isso, ao que Jesus explica: ele não está zombando deles, mas do fato de suas orações serem em vão, e estarem sendo dirigidas para glorificar um deus falso. Esta afirmação provoca ira e blasfêmia em 11 desses discípulos contra o próprio Jesus, revelando que eles não tinham entendido ainda o caráter de seu messias, mesmo no final de sua jornada na Terra.

Em seguida, somente Judas se mostra capaz de se pôr na presença de Cristo, mesmo que não consiga olhá-lo nos olhos (por questão de reverência). E, em voz baixa, ele professa reconhecer a origem divina de Jesus: "Eu sei que és e de onde vens. Viestes do reino imortal de Barbelo, e d'Aquele que te enviou, não sou digno de proclamar o nome" (35.vv. 15-21)

Jesus, então, pede para Judas se separar dos demais, prometendo revelar-lhe os mistérios do reino, mas também prenunciando a sua substituição para completar os doze perante o seu deus e o grande sofrimento que o aguarda.

A superioridade da "geração grandiosa e santa" -- a raça imortal derivada de Seth -- se torna um tema central num segundo momento. Jesus contrasta-a com os seus discípulos e com todas as gerações mortais, afirmando que esta geração santa não é governada por estrelas, anjos ou poderes terrenos, sendo de origem transcendente. Esta distinção é reforçada pelo relato que fazem de um sonho perturbador que tiveram na noite anterior: eles sonham com um templo com um altar onde doze sacerdotes ímpios cometem crimes inomináveis, incluindo sacrifício de crianças, adultério, homicídio e relações homossexuais. Jesus interpreta a visão de forma devastadora: os sacerdotes do sonho representam os próprios discípulos, o altar é o seu deus falso (o criador do Mundo adorado pelos judeus na Torá), e a multidão sacrificada são os fiéis que eles desviam do caminho da gnose. Esta acusação serve para condenar toda a estrutura de culto sacrificial que os discípulos representam.

O diálogo privado entre Jesus e Judas nos fornece dados para entendermos a cosmologia sethiana. Judas tem uma visão de uma grande casa (o reino celestial ou Pleroma), da qual se sente excluído e pelo qual anseia em seu âmago. Jesus esclarece que a entrada nesse lugar reservado aos santos e aos anjos é vedada aos mortais. Em seguida ele revela a Judas que, apesar de seu conhecimento superior, o seu será um destino trágico: ele se tornará o "décimo terceiro", será amaldiçoado pelas outras gerações como um traidor de Cristo, mas no final dos tempos não ascenderá à geração santa.

A revelação cosmológica final descreve a origem do universo espiritual a partir do grande Espírito invisível, da nuvem luminosa e do anjo Autogerado (que é o Cristo Autogenes, o unigênito), que dá origem a sucessivas hierarquias de luminares, anjos e reinos. Neste contexto, a figura do deus criador inferior, Yaldabaoth ou Saklas, é apresentada como a entidade que, com os seus anjos, cria Adão e Eva, funda o reino mortal e perecível. Jesus explica a Judas que as almas da geração santa, ao contrário das outras, terão um destino eterno após a morte do corpo, e que as estrelas e poderes arcontes têm um domínio limitado sobre o cosmos inferior.

O evangelho culmina com a explicação do papel de Judas no plano divino. Jesus declara que a traição é, na verdade, um ato necessário que levará à destruição da "geração do Adão terreno". Judas é instruído a "sacrificar o homem que me carrega" (a carcaça mortal que carrega o espírito superior de Cristo), e Jesus reitera: nenhuma mão mortal verdadeiramente o poderá ferir. A narrativa conclui com Judas contemplando uma nuvem luminosa -- a sua estrela guia -- e entrando nela, ouvindo-se uma voz vinda de dentro. O texto termina abruptamente com a cena da conspiração dos sumos sacerdotes e a aceitação do pagamento por parte de Judas, contextualizando a traição dentro desta complexa teologia de predestinação e cumprimento de um mistério superior.

Interpretações

A narrativa começa de forma propositalmente polêmica ao distinguir Judas Iscariotes dos demais apóstolos: os demais apóstolos são reprovados por servirem a um deus falso, afirma não ser filho dessa divindade e revela que os discípulos pertencem à raça mortal da humanidade, em contraste com a "raça santa" imortal que preexiste nos céus. Eles simplesmente não entendem nada, mesmo estando ao lado de Jesus 24 horas por dia. Esta crítica inicial aprofunda-se quando Jesus associa os discípulos a sacerdotes imorais que praticam sacrifícios humanos para um deus de ódio. O entendimento dessa representação tão negativa dos Doze é a chave para compreender a motivação do texto.

O cerne da crítica do Evangelho de Judas dirige-se aos líderes eclesiásticos da época do autor, que reivindicavam posições únicas de autoridade, incluindo o direito exclusivo de mediar a relação entre Deus e a humanidade através da administração da Eucaristia. São Pedro, por exemplo, é considerado um primeiro papa lendário do Catolicismo pré-niceno (isto é, antes do Concílio de Niceia que ajudou a consolidar o livro sagrado deles e seus dogmas); bispos, igualmente, foram as primeiras autoridades clericais, e evocam sua autoridade por serem de uma linhagem que nos leva diretamente aos 12 apóstolos (após Judas, o traidor, ter sido substituído por Matias). O que o texto diz polemicamente é: tanto os apóstolos quanto seus autoproclamados herdeiros servem a um deus falso.

Em resposta a essa institucionalização clerical nascente, o autor lança uma campanha difamatória contra a legitimidade do clero atacando o próprio alicerce de sua autoridade, portanto. Esta polêmica é evidente em duas cenas centrais do evangelho. Na primeira, Jesus encontra os Doze a realizar um ritual de eucaristia e corrige-os por servirem, involuntariamente, a Yaldabaoth, o deus estúpido do Velho Testamento. A reação dos discípulos não é de arrependimento, mas de raiva e blasfêmia contra Jesus, demonstrando sua fraqueza moral e incompreensão espiritual. Na segunda cena, os discípulos relatam um sonho perturbador com doze sacerdotes ímpios a cometerem todo o tipo de pecados e crimes, incluindo sacrifício humano e homicídio. Jesus interpreta o sonho de forma chocante: os sacerdotes ímpios são os próprios discípulos, e o altar é o seu deus falso.

Esta acusação de sacrifício humano é cheia de nuances complexas. Por um lado, um acadêmico como Frank Williams argumenta que o texto é antes de tudo um ataque à eucaristia (os rituais do culto cristão) em si, insistindo que ela não deve ser celebrada. Isso representa um afastamento da tradição cristã da judaica. Outros, incluindo o próprio tradutor do evangelho Lance Jenott, sugerem que a imagem do sacrifício humano visa criticar a promoção do martírio, interpretado por muitos cristãos como um sacrifício supremo. O martírio virou, na tradição católica, uma forma de promoção espiritual:

Para resumir, a Igreja Católica explica o mártir é o cristão que testemunha (martyria, em grego) a fé em Cristo até sua morte, imitando de forma plena o sacrifício do Messias na cruz. A lógica que confere ao mártir um estatuto espiritual superior se baseia em uma porção de pilares teológicos: além da reprodução na própria carne da paixão de Cristo, a morte humana aqui deixa de ser uma simples tragédia e torna-se um ato de amor supremo, reativando o sacrifício redentor de Jesus perante a comunidade de fiéis dessa recém-surgida Igreja católica, ou universal. Como escreveu São Cipriano de Cartago no século III: "Não pode haver maior honra do que ser imitador de Cristo". A Igreja Católica também ensinou que o martírio apaga o pecado original e todos os pecados pessoais, mesmo que o mártir não tenha recebido o batismo da água. Esta doutrina, conhecida como "batismo de sangue", foi expressa por Santo Agostinho e outros Padres da Igreja alguns séculos depois de o Evangelho de Judas ser escrito. O mártir receberia, assim, a plenitude da graça batismal.

A morte do mártir era vista como um sacrifício agradável a Deus, intimamente ligado ao sacrifício eucarístico -- atenção para isso. Inácio de Antioquia (século II), a caminho de ser devorado por bestas ferozes em Roma, supostamente escreveu: "Deixai-me ser o trigo de Deus, moído pelos dentes das feras para me tornar puro pão de Cristo". O martírio é, assim, uma liturgia vivida no próprio corpo. Essa é uma citação contemporânea à composição do Evangelho de Judas, e existem posição parecidas de vários outros padres da igreja (dá uma olhada em Exortação ao Martírio de Orígenes de Alexandria, em Apologética, 50 de Tertuliano de Cartago, nas Cartas de Santo Inácio de Antioquia: são todos autores pré-nicenos, dos século II e III, repetindo a mesma ideia. Nesse debate, o Evangelho de Judas se posiciona contrariamente, e não está igualando eucaristia e sacrifício à toa. Eram os católicos que estavam fazendo isso.

Mais um detalhe: a acusação de sacrifício humano era, no Império Romano, um artifício retórico comum para ofender seus oponentes, chamá-los de bárbaros e subversivos de uma sociedade decente. Há registros de gregos chamando romanos disso, de judeus e cristãos usando entre si. Assim, tem uma chance de o autor/autora de Judas ter se apropriado dessa retórica originalmente dirigida contra pagãos idólatras, redirecionando-a contra outros cristãos, acusando-os de adorar um deus falso que é, na verdade, um anjo apóstata. Esse era Yaldabaoth do qual falei no último episódio, o Deus falso do Gênesis que enganou os hebreus antigos e fez o favor de nos colocar em um mundo horrível de sofrimento e divisão.1

A relação do Evangelho de Judas com o chamado gnosticismo sethiano é fundamental aqui. O texto recorre a Seth, o terceiro filho de Adão e Eva, como o ancestral espiritual de uma raça santa, e posiciona-se dentro dessa corrente do cristianismo primitivo. Eu lembro: gnosticismo é um termo usado pelos Padres da Igreja Católica futura como São Irineu para colocar todos os anticosmistas no mesmo saco e chamá-los de hereges; o autor/a do Evangelho de Judas certamente se identificava como um Sethiano. Os cristãos sethianos se diferenciavam dos demais por se verem como agentes diretos da Providência divina, destinados a melhorar a condição humana. Eles eram espiritualmente superiores aos demais por não terem sido gerados a partir de Caim, Abel e sua progênie; eles eram filhos legítimos de Seth, o filho legítimo de Adão e Eva.

Os editores da tradução inicial do Evangelho de Judas propuseram que o seu mito da criação representa uma forma inicial da teologia sethiana, somente, ainda não desenvolvida na complexidade encontrada em textos como o Apócrifo de João -- então o próprio sethianismo se transformou um tantinho com o passar do tempo. Assim, textos sethianos posteriores, como o Livro Sagrado e Melquisedeque, já deixarão de criticar a interpretação sacrificial da morte de Jesus, mas antes encontram um poder redentor positivo na crucificação como um triunfo sobre os poderes demoníacos.

A datação do texto é alvo de debate. Ireneu de Lyon se refere a um Evangelho de Judas por volta de 180 EC, mas há alguns estudiosos sugerem a existência de mais de uma versão desse evangelho na Antiguidade. Como isso nunca foi comprovado, vamos manter que esse foi o único texto, e de fato ele data de de algum momento após a composição do Evangelho de João aceito pelas Bíblias atuais, e o momento em que Ireneu escreveu seus textos anti-heresiarcas em 180. É um texto do século II, portanto.

Mas a versão que chegou a nós é do século IV, e isso é algo interessante por si só: por que esse texto teria interessado o público egípcio do século IV, a ponto de ser traduzido do grego para o copta e se incluso no Códice Tchacos (que é uma das várias reunidos de textos sagrados que acabaram não virando a Bíblia oficial, digamos, da doutrina cristã)? Isso pode estar relacionado com o interesse do códice em narrativas de perseguição e martírio, talvez. O códice é entendido como o produto de uma comunidade cristã num tempo em que os limites da ortodoxia e um cânone escripturístico ainda não estavam plenamente estabelecidos -- e nos revela uma das vertentes que combateram contra o Catolicismo e foi derrotada por ele nesse debate.

A caracterização de Jesus no evangelho é consistente com a teologia sethiana: ele não é o filho do deus dos discípulos, mas um emissário de um reino divino superior. Um exemplo subtil dessa distinção ocorre quando Jesus ri durante a cena da Eucaristia. Ao afirmar que não está a rir dos discípulos, mas da "loucura" das estrelas que os desencaminham (mais uma referência ao Timeu de Platão), Jesus implica que zomba da fonte do seu erro, o falso deus que servem. Como observam duas acadêmicas que estudaram a época, Elaine Pagels e Karen King, o texto opera sob a premissa central de que as pessoas se tornam semelhantes ao deus que adoram. Os discípulos, ao servirem um deus de ira e de ódio (Yaldabaoth), herdam a sua característica, tornando-se eles próprios irados e blasfemos uma vez que são criticados.

Judas Iscariotes, em contraste, é retratado como o discípulo especial, o único capaz de se aproximar de Jesus, ainda que não possa olhá-lo nos olhos. Ele é o "homem perfeito" que manifesta a estabilidade psicológica (apatheia) valorizada pelos sethianos, um ideal ético aplicado aos membros mais exemplares da "raça imóvel", mas que era um ideal de algumas correntes de filosofia grega em voga no Império Romano. Por intermédio de Judas, o texto é capaz criticar os outros discípulos e a forma de cristianismo que representam. A referência a alguém que tomará o "lugar" de Judas é uma clara alusão a Atos 1:25, onde Matias é escolhido para tal, mas a passagem no evangelho é cheia de lacunas, obscurecendo o comentário sobre os doze se tornarem "completos no seu deus".

Em suma, a polémica no Evangelho de Judas centra-se mais no caráter moral corrupto dos doze discípulos do que em interpretações específicas da morte de Jesus ou da celebração eucarística. O autor pertenceu provavelmente a uma comunidade cristã que, semelhante às descrições de Tertuliano sobre alguns grupos, via com ceticismo a necessidade de um clero ordenado, preferindo formas de autoridade carismáticas ou leigas. O texto participa numa disputa mais ampla do século II sobre a legitimidade dos deuses e a liderança eclesial, utilizando uma crítica teológica sofisticada e uma retórica contundente para desafiar a autoridade clerical emergente, que se fundamentava no mito dos doze apóstolos, aqui desconstruído e apresentado como um culto apostólico equivocado.

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Referências

Marvin W. Meyer. The Nag Hammadi Scriptures (2007)

Comentários: páginas 798-803;

Texto: páginas 804-813.

Lance Jenott. The Gospel of Judas: Coptic Text, Translation, and Historical Interpretation of the 'Betrayer's Gospel'. Tübingen: Mohr Siebeck, 2011 (Studien und Texte zu Antike und Christentum).

Introdução: páginas 1-6;

Capítulo 2: contra o clero em formação naquele século (I? II? III?); Sethians; páginas 37-69.

Capítulo 4: Apelo para egípcios no século IV, que os traduziram para o cóptico?

Notas

  • É possível que haja um paralelo extra ainda: a crítica de rituais vazios, perpetrados por pessoas que não entenderam o cerne ético de sua religião, e se contentam em repetir rituais esvaziados de conteúdo. Isso vem de Platão já, que diz em Leis IV 716d-e: "If a good man sacrifices to the gods and keeps them constant company in his prayers and offerings and every kind of worship he can give them, this will be the best and noblest policy he can follow; it is the conduct that fits his character as nothing else can, and it is his most effective way of achieving a happy life. But if the wicked man does it, the results are bound to be just the opposite. Whereas the good man's soul is clean, the wicked man's soul is polluted, and it is never right for a good man or for God to receive gifts from unclean hands -- which means that even if impious people do lavish a lot of attention on the gods, they are wasting their time...".