Cristianismo no contexto do Império Romano

Dissidência judaica na Antiguidade Tardia

Escrito por F.V.Silva em 07/05/2025

A história do Cristianismo primitivo começa nas províncias do Império Romano onde, em outros tempos, estiveram o Egito, a Grécia, indo até as fronteiras do Irã Sassânida — ela coincide com o período de invasões do Império Romano do Ocidente e seu consequente desmembramento. De um ponto de vista demográfico, as províncias ao Sul da Itália formavam um caldeirão de línguas de povo outrora gloriosos. Macedônios, judeus, persas, gregos, egípcios ainda habitavam ali; os gregos ainda ensinavam a filosofia platônica em escolas ao modelo da Academia de Platão, quinhentos anos depois da morte de seu idealizador. À época, o judaísmo era regido pelos fariseus, um grupo de devotos à antiga Lei de Moisés, focado na conservação da identidade religiosa que, no seu juízo, estava se perdendo após séculos de submissão dos hebreus a outros povos. Mesmo Roma não era a mesma: os imperadores dessa época são indíviduos de nomes e feitos menos conhecidos como Cômodo, Pertinax, Dídio Juliano, Sétimo Severo, Caracala — você só ouvir falar deles caso tenha se especializado em história romana.

Para resumir, o Império e suas províncias viviam congelados no passado — politicamente o Império passava por sucessivas crises administrativas, e as populações por ele dominadas viviam organizando revoltas e combatendo entre si. E, principalmente, movimentos espirituais populares disputavam espaço e legitimidade frente aos governos provinciais — os principais eram o gnosticismo valentiniano, o recém-surgido cristianismo, o judaísmo farisaico e o neoplatonismo. Quando digo que eles disputavam espaço, pensem em seus intelectuais escrevendo longos tratados para refutar a religião alheia, mas também massas de cristãos entranto em conflito físico contra o que eles chamavam de pagãos gregos. Foi uma época violenta de divisões, embora todos esses grupos estivessem unidos por certas características. A religiosidade da época se definiu por uma completa separação da vida do espírito e da vida no mundo — a vida da política, das relações entre as pessoas —, apelando para um misticismo e cultos secretos que deram início a várias doutrinas que mais tarde redundariam no esoterismo: a literatura hermética, as seitas gnósticas e o cristianismo primitivo, mais as religiões pautadas em mistérios do Egito Antigo, se proliferaram nessa época.

Aquela foi uma época de sábios de barbas longas, desprovidos de casa e pertences pessoais, andando de cidade em cidade em suas túnicas esfarrapadas, acompanhados por uma porção de discípulos. Eles confrontavam as autoridades e os saberes estabelecidos com uma doutrina que dizia: a contemplação da esfera espiritual conta como o verdadeiro vínculo com o Divino. Tratava-se de uma época de comunidades ascéticas que se uniam nas montanhas para viver uma experiêcia de radical separação do mundo real — a ideia da mortificação da carne, da separação de uma comunidade focada em assuntos espirituais esperando o fim do mundo como o conhecemos era a grande tendência dos séculos I ao III nas províncias do Império Romano.

Pegue um mapa das cidades pelas quais o Evangelho de Marcos diz que Jesus Cristo passou: Tibério, Galileia, Nazaré, Gadara: todas eram cidades helenísticas (ou seja, de cultura e língua grega), com suas próprias stoas e academias de neoplatonismo. Gadara era um centro de filosofia e literatura, com três grandedes filósofos vivos durante a época de Jesus. O mesmo quando a gente avança quase cem anos e chega no apóstolo Paulo, o verdadeiro fundador da ideia de igreja cristã unificada: Paulo fala grego, usa termos do neoplatonismo e gnosticismo, e discute em suas epístolas doutrinas que vieram dessas duas grandes correntes do pensamento.

O objetivo desta contextualização pode ser expresso aqui: ele é um objetivo historiográfico, com certeza, mas que nos permite ganhar muito mais contexto para entender as origens filosóficas e mesmo institucional da Cristandade. Aqui há uma passagem da Antiguidade, como fase da civilização euroasiática, para a Antiga Tardia e então a Idade Média. Essa é uma história que não nos contam na escola ou universidade, mas que explica a formação do mundo dominado por um tipo de religiosidade ainda vigente.

Essa contextualização explica também porque demorou tanto até que os ensinamentos de Jesus levasse à formação das igrejas do cristianismo primitivo (décadas após seu nascimento) e uma interpretação de que sua morte na cruz não tinha sido um fracasso — mas a abertura da ideia do Reino dos Céus. Para contemporâneos romanos e alguns dos doze discípulos, a crucificação provava que Jesus de Nazaré era só mais um líder espiritual entre dezenas de outros na ativa que prometiam o fim do mundo e questionavam as práticas do judaísmo farisaico, mas que morreu antes de sua profecia se realizar. Aquilo tinha se tornado parte do cotidiano do Império Romano, a ponto de os oficiais romanos nem se darem ao trabalho de registrar a vida e feitos de Jesus — para todos os efeitos, não há qualquer registro oficial de um Jesus (ou Yeshua) nascido em Nazaré que tenha sido crucificado em meados do ano 33 em Jerusalém, na Província da Judeia. Teólogos têm três fontes principais que compravariam a existência histórica de Cristo, mas elas foram todas escritas por pessoas que nasceram décadas ou séculos depois da cruficificação narradas pelos cristãos primitivos. Foram todas fontes do que se dizia por aí sobre mais um profeta do fim do mundo que teve sua vida abreviada por falar demais.[1]

Estamos em 2025 e o fim do mundo não aconteceu — ao menos se o interpretarmos como o fim do mundo físico e ascensão das almas para um plano espiritual. O que aconteceu foi uma reinterpretação de que a morte de Cristo teria aberto o plano da vida eterna no post-mortem, o alastramento da fé cristã e sua oficialização em 312: nesse ponto o cristianismo vira religião oficial de um Império Romano enfraquecido. Em 476, esse império cai no Ocidente, a capital Roma é transferida para Constantinopla, e seu desmembramento foi lento e doloroso: aqui a gente tem o surgimento dos reinos da Europa e reconfiguração completa do Oriente Médio. Cai o império, fica sua religião. Uma pesquisa de 2011[2] aponta que o Cristianismo é a religião predominante em 157 países do mundo, o que não é pouco; 31,5% da população mundial, segundo a tal pesquisa, é professa a religião cristã ou se vê como parte de sua cultura espiritual. Mesmo que não vão à igreja, elas falam de céu e inferno, da trindade; aceitam ideias de vida após a morte e conversão que são ideias teológicas vindas dessa tradição específica.

A formação do cristianismo como religião unitária, portanto, levou uns 300 anos para acontecer. Levou uns 300 anos para cristãos chegarem a um acordo sobre a composição de seu livro sagrado — e essa também é uma história de suma importância para entendermos os grupos que caíram e foram, em muitos casos, mortos como hereges nessa disputa de interpretações da doutrina.

Notas de rodapé

[1] Merrigan, T. (2000). "The Historical Jesus in the Pluralist Theology of Religions". In Merrigan, T.; Haers, J. (eds.). The Myriad Christ: Plurality and the Quest for Unity in Contemporary Christology.
Edison Veiga. "O que prova que Jesus existiu?". 25/12/2024. https://cultura.uol.com.br/noticias/dw/71078239_o-que-prova-que-jesus-existiu.html
Richard Carrier. https://www.youtube.com/watch?v=soQ8bt50Yrw
Richard C. Carrier. On the historicity of Jesus: why we might have reason for doubt. Sheffield Phoenix Press Ltd, Sheffield, UK, 2014

[2] The Global Religious Landscape, PewResearch Center, 2011. https://assets.pewresearch.org/wp-content/uploads/sites/11/2014/01/global-religion-full.pdf