Escrito em 2025
Entre os séculos III AEC e I EC, o Mediterrâneo e o Norte da África viveram um período de atividade intelectual extraordinária, que resultou no surgimento de um sectarianismo sem precedentes. Pessoas brigando por ideias, sobretudo ideias religiosas. A prática das pessoas dessas regiões geralmente era a de seguir as religiões vinculadas a suas províncias, cidades e comunidades locais. Quando uma nação conquistava outra, ela trazia consigo seus deuses e costumes, que se sobrepunham ou eram adotados pelos povos dominados. Mas essas mudanças eram lentas e pouco problematizadas, pois não havia um conceito de "fé errada" ou de "impiedade": religião era o rito cotidiano ligado ao reconhecimento da autoridade local: da mesma forma como você reconhecia um rei local, você reconhecia a classe sacerdotal que estivesse no poder e seguia seus rituais. As pessoas não costumavam dizer "eu louvo do meu jeito, você louva de outro jeito"; sua religiosidade era definida por circunstâncias geográficas e políticas -- na Antiguidade alguns líderes do povo hebreu problematizaram isso (Moisés, é claro, mais o profeta Neemias, são alguns dos que a gente lê no Velho Testamento exortando ao povo para que não adore deuses antigos de seus dominadores e mantenha-se fiel às tradições hebraicas), mas isso constituiu uma exceção. Mesmo esses profetas hebreus do Velho Testamento tinham uma noção que a gente chama hoje de henoteísta: existia a aceitação de múltiplos deuses (porque deuses são entidades imaginadas de povos diversos, e os hebreus eram bem viajados para saber que existia uma porção deles), como é indiscutível no versículo de Êxodo 15:11: "Quem entre os deuses é como tu, ó Senhor (YHWH)? Quem é como tu, majestoso em santidade, terrível em feitos gloriosos, operando maravilhas?"
Salmo 82:1: "Deus (Elohim) está na assembleia divina; no meio dos deuses (elohim), ele julga."
Deuteronômio 6:14: "Não seguireis outros deuses, os deuses dos povos que vos rodeiam.
Se um deus local falhasse em proteger sua terra contra invasores, era natural que os vencidos adotassem os deuses dos vencedores. Alguns líderes hebreus inovaram alertando para que seu povo não se curvasse à cultura estrangeira. Manter seu deus e sua língua e sua identidade seria uma forma de resistência à violência dos processos históricos. A gente vai ter que tirar um episódio para falar só para isso, mas a ideia de que o judaísmo era um monoteísmo desde Moisés (no século 10 AEC), é uma das falsificações históricas mais difundidas por pastores cristãos, sobretudo evangélicos, como estratégia de legitimar sua fé com um argumento de antiguidade. Quem professa o judaísmo hoje e o estuda a fundo não tem problema nenhum em assumir que a transição do henoteísmo para o monoteísmo estrito (crença em um único Deus, com a negação da existência de outros) foi um processo gradual no judaísmo, mas atingiu seu ápice durante e após o Exílio Babilônico (século VI a.C.), com figuras como os profetas Deutero-Isaías (Isaías 40--55), Ezequiel, e, posteriormente, as reformas de Esdras e Neemias (século V a.C.). Monoteísmo veio com uma necessidade de unificação do povo judeu contra dominação externa, e esse projeto de reforma fracassou a princípio. Era o século I, veio Jesus Cristo e o movimento paulino, e os judeus tinham perdido sua língua (o próprio Paulo falava grego, Jesus falava aramaico galileu, não hebraico) e eram, a rigor, romanos helenizados.
E nesse século 1, viajantes, pregadores e mercadores gozavam de um estatuto especial: podiam manter sua fé, desde que respeitassem as divindades da terra que os acolhia. Seu deus era tratado como um visitante entre os deuses locais, e esperava-se que cada um mantivesse convivência harmoniosa e não se metesse a besta de satirizar práticas alheias. Foi nesse cenário que João Batista, Jesus Cristo e o apóstolo Paulo puderam perambular pela região do Mediterrâneo e difundir seus ensinamentos, sem perseguição. Mas mesmo essa flexibilidade mudou radicalmente, e em pouco tempo. Surgiu uma nova atitude religiosa que rejeitava certas crenças como falsas e supersticiosas, enquanto impunha outras com fervor sectário -- é isso que estou chamando de sectarismo. A fé deixou de ser uma questão de tradição local e tornou-se objeto de disputa, um campo de batalha ideológico onde grupos rivais buscavam impor suas visões, muitas vezes com violência.
Esse novo clima religioso não teve origem em uma revelação divina, mas em transformações sociais, políticas e filosóficas que se espalharam rapidamente por vastos territórios. Ninguém dar uma causa única -- dizer: "é isto aqui" que aconteceu -- para pessoas de um território tão amplo mudarem sua atitude perante religião. Transformarem algo que era só rito e observação de hierarquia, de costumes, em uma profissão de fé da qual depende seu destino, sua identidade coletiva. Sua ligação com seus antepassados, inclusive. De qualquer forma, um dos fatores importante aqui foi o surgimento e alastramento do Império Romano do Ocidente, cujo estilo de vida era pautado pela conquista, comércio e ambição econômica, não em tradição ou os ditames de uma casta sacerdotal detentora dos ritos locais. Para os romanos, a religião vinha em segundo lugar, só depois dos negócios -- essa é uma mentalidade que, de certa forma, ecoa em nosso mundo moderno. Eles mantinham rituais e preces, mas foram pioneiros em rezar não apenas por proteção divina, mas pelo fracasso de seus competidores, pelo próprio lucro. Esses textos aparecem principalmente em tábuas de maldição (*defixiones*) e inscrições votivas. As *defixiones* eram lâminas de chumbo escritas com maldições, depositadas em templos, fontes ou túmulos para invocar poderes sobrenaturais contra adversários. Um exemplo é a Tábua de Maldição de Aquae Sulis (Bath, Inglaterra) -- Século II-IV d.C.: https://romaninscriptionsofbritain.org/inscriptions/TabSulis10
(Uma inscrição contra um ladrão, pedindo a deusa Sulis Minerva que o destrua)
Ela diz: "Docilianus (filho) de Brucerus [Brucetus?] à santíssima deusa Sulis. Eu amaldiçoo aquele que roubou meu manto com capuz, seja homem ou mulher, seja escravo ou livre, para que [...] a deusa Sulis inflija a morte sobre [...] e não lhe permita dormir ou ter filhos agora e no futuro, até que ele tenha levado meu manto com capuz ao templo de sua divindade." (*Tab. Sulis 10*, no British Museum)
Essa abordagem pragmática e personalista da religião marcou uma ruptura com formas radicalmente diferentes de lidar com tradições religiosas mais antigas.
E ao absorver centenas de povos e suas respectivas religiões, os romanos criaram um império incrivelmente diverso, onde coexistiam crenças diversas sob o domínio de uma elite relativamente indiferente às questões espirituais. Que tratava os deuses como um dispositivo prático -- como aquele para quem você pede a destruição de seu inimigo, como se fosse seu servo divino. Diferentemente de hebreus, gregos, druidas e outros povos que estavam conquistando, os romanos não desenvolveram um sistema religioso profundamente filosófico. Em vez disso, perceberam que não podiam destruir as religiões dos dominados sem arriscar a desestabilização social: uma sociedade como a dos hebreus era organizada em torno do Templo, dos sábios religiosos que serviam de poder executivo, legislativo e que mantinham a população nos trilhos, em outras palavras. Os romanos seriam insanos se quisessem tirar o poder dessa casta sacerdotal. A solução foi decretar tolerância religiosa universal no Império Romano e suas províncias: desde que os impostos fossem pagos, o imperador reverenciado e a ordem mantida, seus súditos eram livres para cultuar seus deuses locais.
- Cícero (*Pro Flacco*, 69 a.C.):
"Nossos ancestrais sempre permitiram que os povos conquistados mantivessem seus próprios cultos, desde que não fossem contrários às nossas leis."
Houve exceções: Cultos considerados *superstitio* (práticas excessivas ou anti-sociais, como o druidismo na Gália ou os bacanais em 186 a.C.) foram reprimidos, e isso é um capítulo na história britânica muito específico. Negar-se a queimar incenso ao *Genius* de César era visto como traição (então em um ou outro momento houve perseguição a cristãos sob algum imperador com ego exacerbado, e cristãos sempre foram particularmente rebeldes frente a essa coisa do culto à personalidade imperial. Veja o caso do imperador Décio em 250 d.C.).
Mas de qualquer forma, essa política de tolerância universal criou um cenário único, mais cosmopolita e plural do que a Europa voltaria a ser até o século XX. O mundo nunca tinha visto aquilo, naquelas proporções. Surgiu o que o escritor Manly P. Hall chamou de "religion shopping", como se a pessoa pudesse sair às compras de novas convicções religiosas -- a condição para tal era uma liberdade inédita que pessoas tinham de para circular entre templos e tradições, buscando diferentes formas de transcendência e consórcios mais vantajosos dentro de um ou outro grupo religioso. Essa mistura deliberada de práticas religiosas seguia aquela nova atitude perante a fé que mencionei lá atrás: os indivíduos adotavam elementos de múltiplas tradições, muitas vezes buscando benefícios espirituais, mágicos ou sociais. Tratava-se de um comércio com a esfera divina. Era comum que indivíduos intelectualizados frequentassem cultos egípcios, gregos e persas, combinando influências de maneira eclética e mostrando para todos que estavam abertos a tudo, a todas as fontes de sabedoria. Mistérios orientais (como os de Ísis, Mitra ou Cibele) ofereciam experiências espirituais intensas -- isso vendia até pacotes de turismo para o Egito dos faraós (algo que parece ser uma ideia do capitalismo moderno, mas é muito mais antiga. A indústria do turismo começou como turismo místico, de romanos em busca de uma fatia da sabedoria arcana dos egípcios e persas e sírios). Grandes intelectuais valorizavam esse universalismo, vendo nele uma demonstração de versatilidade e identidade autenticamente romana.
Um exemplo fascinante dessa mistura foi o culto a Mitras, um deus de origem sírio-iraniana, cujos símbolos foram encontrados em relevos romanos na Britânia. O Mitraísmo era mais uma mistura de astrologia romana com aspectos de religiões de outros povos do que um culto de vários séculos, praticado com rigor e respeito às tradições estrangeiras. Legionários enviados para a guerra deixaram para trás dois baixos relevos encontrados junto a uma trilha mostra Mithras, o *Sol Invictus*, sacrificando um boi (isso ocorreu na trilha de Oxford, hoje a famosa cidade britânica). O deus crava uma adaga na garganta do touro --- junto a acompanhantes simbólicos habituais: um corvo, um cão, uma serpente, o sol e a lua. Familiares unidos a Mithras aparecem em imagens de culto em outros lugares, em Dura-Europos e em Palmira, porque o culto mitraico é da região da Síria. O que legionários estavam fazendo com símbolos de um deus sírio-iraniano? A arqueologia das conquistas romanas mostram que essa mescla de artefatos religiosos formam um padrão. Dentro daquele grupo, esse deus bélico representava melhor seu temperamento e servia de símbolo de pujança e virilidade -- bastava para que o culto de Mitras começasse a se espalhar no meio dos soldados legionários. Era uma moda? É. Mas não existe religião que não tenha começado como uma moda, uma tendência apelativa para pessoas sedentas por respostas existenciais, ou status social, ou dinheiro e poder.
https://mithras.tertullian.org/display.php?page=main
Foi nesse contexto complexo -- de reformas no judaísmo, desilusão com os antigos deuses e intensa busca espiritual -- que o cristianismo emergiu. Diferente das religiões cheias de deuses, que podiam ser assimilados e comparados aos deuses de outras fés, o cristianismo propôs uma ruptura radical, alterando as regras do jogo religioso. Ele começou absorvendo uma ideia do hermetismo e do neoplatonismo de que haveria um só deus -- deus não como uma personagem dentro da mitologia, mas como princípio unificador da existência. Esse é o *lógos* de Platão, que vemos reinterpretado no início do Evangelho de São João:
¹ No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
² Ele estava no princípio com Deus.
³ Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez.
⁴ Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. (João 1:1-4)
Isso, a gente vai analisar mais para a frente, é um platonismo escancarado. Os termos e conceitos são conceitos pagãos de Deus como a origem inefável da inteligibilidade do cosmos, não uma figura antropomórfica. Não é mais o deus do judaísmo, é uma inovação derivada desse contexto de "religion shopping": também os judeus dissidentes saíram às compras de novas ideias e encontraram na filosofia grega uma porção delas.
E é aqui que o imaginário religioso romano muda de repente: o novo Deus não cavalga em cavalos mágicos, tampouco se metamorfoseia, imitando ações humanas que passam um ensinamento prático sobre comportamento e costumes. Deus vira um espírito que prescruta os confins do universo e se alheia à pequenez das ações humanas. Ele se torna um princípio filosófico que você busca para se unir ao cosmos, à totalidade dos fenômenos que movem o mundo. Você passa a buscar na religião ensinamentos sobre o mistério da inquietação humana, da natureza, do desdobrar da história -- líderes religiosos abandonam sua face social e qualquer pretensão a um sacerdócio opulento. A religiosidade da época se definiu por uma completa separação da vida do espírito e da vida no mundo --- a vida da política, das relações entre as pessoas ---, apelando para um misticismo e cultos secretos com hierarquias ainda mais secretas. Eles eram sábios andarilhos dormindo ao relento, que mostravam que o melhor que você podia esperar da vida não estaria aqui exatamente, no mundo material. Estaria dentro de você, ou num reino no além, ou no vínculo místico com sua comunidade de correligionários. Às vezes, em tudo isso junto. E o cristianismo primitivo foi isso, vocês reconhecem essa descrição: um culto secreto, uma seita dissidente do judaísmo helenizado do século 1. Uma de suas inspirações foi o neoplatonismo Plotino e Ammonius Saccas, homens que igualmente viveram vidas acéticas, indiferentes aos prazeres do mundo e das riquezas da mesma forma que imaginamos Jesus Cristo e João Batista vivendo. O tipo social do líder espiritual aceta era um lugar comum. No hermetismo egípcio, mais uma porção de sábios viveram assim, abandonando até seu ego: um grande sábio era a própria encarnação de Hermes Trismagisto. No zoroastrianismo, o grande sábio da época era o próprio Zoroastro, como hoje em dia há vários Dalai Lamas, um a cada geração. Essa era a tendência dos líderes religiosos inovadores.
No espaço de dois séculos, o Cristianismo levaria a ideia do *Lógos*, do deus único, às últimas consequências, diferentemente desses outros movimentos surgidos em época de mescla deliberada de fés e ideias. Antes, ele se assumiria como a resposta para a desordem religião do Império Romano e do judaísmo, e dos paganismos, entraria em guerra contra todas as crenças que destoasse de seus princípios. Quando a gente pensa o Império Romano do século 3 como unificado sob a égide de uma só fé, com uma religião oficial, a gente está falando de um movimento de divisão. "Um só deus" significou "o meu deus, e não o seu".
De novo, a gente está se adiantando. Ninguém que vivesse 2 séculos antes imaginaria que isso aconteceria. Nossa missão é entender os judeus helenizados dos séculos 1 ao 3, e por isso essa série vai começar com neoplatonismo: essa foi a filosofia que se desenvolveu nessa época, paralelamente ao movimento cristão, e dou boa parte de suas ideias teológicas até a fundação da Igreja Católica.